Jamie Lidell (agora) escreve canções, canta-as como um verdadeiro homem da soul, e, por ouvidos menos atentos, pode ser confundido com Otis Redding ou Marvin Gaye, mas só mesmo por ouvidos menos atentos. Mas dá um tratamento às canções que não podia vir das épocas desses artistas. Há sempre algo que remete para o novo milénio, quanto mais não seja pelas técnicas de produção ou pelos sons inegavelmente digitais que se ouvem.
Daí que se possa, talvez, falar de uma soul digital aqui, tanto em Multiply, o disco de Jamie Lidell, como em Smash, o disco de Jackson and His Computer Band, mas só com alguma boa vontade. Tudo porque são formas totalmente diferentes de partir do digital para criar algo que deveria ser, à partida, analógico, a soul.
Para complicar as coisas, são os dois brancos e são os dois europeus. Jamie Lidell é inglês mas vive em Berlim, cidade dada às músicas electrónicas, e Jackson Fourgeaud é parisiense de gema. Mas na música que Fourgeaud faz a cor da sua pele e a sua origem não são importantes, seriam importantes na de Lidell, que é um novo Michael Jackson sem recorrer às produções dos Neptunes ou de Timbaland para Justin Timberlake (um outro novo Michael Jackson). Mas aí as produções e as canções tinham mesmo sido escritas para Jackson, sendo Timberlake apenas um dead ringer para o artista, e aqui Lidell é escritor de canções, produtor, cantor e entertainer nato.
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Jamie Lidell Multiply Warp |
“Crescei e multiplicai-vos”, é isto que Jamie Lidell faz no vídeo do tema-título do disco, “Multiply”, single ouvido um pouco por todo o lado mas que mesmo assim não se revelou irritante. “I’m gonna take a trip and multiply”, e é exactamente isso que acontece aqui. Multiply cimenta o estatuto de Jamie Lidell como semi-deus da soul britânica, com malhas de baixo funky, de guitarra soulful, sintetizadores óptimos, o falsete sublime, tudo. É um regresso a outros tempos (em termos da forma de escrita de canções), mas sob uma perspectiva totalmente do século XXI, com manipulação digital, sendo os instrumentos ao contrário em “When I Come Back Around” e as paragens em “A Little Bit More” exemplos disso. Acompanhado por Gonzales e Mocky (as vozes deles também se fazem ouvir em singalongs), Multiply demorou uns 5 anos a ser feito. Com baladas como “This Time” e “Game for Fools”, os sopros em “Newme”, uma desbunda quase jazzy (ou mesmo prog, no final), a aproximação a um r’n’b mais actual em “What’s the Use” (“I’m a walking, talking question mark”), os 5 anos valeram totalmente a pena. Temos aqui um vencedor, meninas e meninos (mexam os pés e as ancas e estalem os dedos), e se isto não fizer de Jamie Lidell uma estrela pop, o mundo é um sítio feio, frio e mau.
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Jackson And His Computer Band Smash Warp |
Jackson Fourgeaud usa samples de voz, corta-os aos pedacinhos, junta-os a batidas milimétricas e a sintetizadores, ou a outros samples, e faz uma mistela interessante que pode parecer estranha às primeiras audições, mas que depois se revela quente e doce. Smash começa com a voz cortada e colada da mãe de Fourgeaud, uma cantora de folk e blues em “Utopia”, com sintetizadores por detrás. Às vezes até se consegue perceber o que a voz canta. “Have you really thought about Utopia?”, no meio, vem com sons celestiais por detrás, mas cedo volta a mistura de vozes e as batidas. “Rock on” continua com os samples de vozes, mas tem sons de teclados que colados parecem um só riff de guitarra, “Minidoux” é um tema curto, que parecem vindos de um jogo de computador antigo, “Oh Boy” tem uma criança a contar uma história de um rei, “Hard Tits” é o tema mais soul, com “oooh”, “Promo” tem guitarras sintetizadas, “Headache” podia ser dos Mouse on Mars, “Moto” é quase tuning chunga e “Fast Life” quase que parece uma canção. A receita é sempre a mesma: cortar, copiar, colar, juntar sons que à partida não combinariam (isso notando-se perfeitamente). Mas acaba tudo por ter uma alma que à partida não se encontra neste método. E ainda bem.
rodrigo.nogueira@bodyspace.net