Falsa pop versão indie
· 08 Out 2005 · 08:00 ·

Dois discos de 2005 assumidamente pop (se bem que pouco ou nada tenham a ver em termos de sonoridade), cheios de grandes canções, que representam dois modus operandi distintos de escrever canções que podem ser vistos como artificiais. Mas ambos: 1) são extremamente eficientes; 2) podem culminar em resultados tocantes e belíssimos. O primeiro, um disco já com alguns meses, Come on Feel the Illinoise! (Illinois, para abreviar) de Sufjan Stevens, o segundo na sua série dedicada aos 50 estados dos E.U.A., foi altamente bem recebido pela comunidade indie, mesmo apesar dos seus longos 70 e poucos minutos. O segundo, um disco fresquinho, saído há poucas semanas, Twin Cinema dos New Pornographers, é o terceiro na carreira dos canadianos, e é aquele que poderá ou não fazer deles (nos mercados anglo-saxónicos) os “novos†Shins ou Modest Mouse, em termos de banda indie levada para o mainstream, com verdadeiros êxitos.

Duas pessoas diferentes, Sufjan Stevens e Carl Newman (o principal escritor de canções dos New Pornographers, sem qualquer tipo de demérito, obviamente, para Dan Bejar, também da banda-que-não-é-banda Destroyer), e dois modos diferentes de escrever. Sufjan Stevens, nesta série específica de discos e não só, escreve sobre um só tema, seja a Bíblia em Seven Swans, o seu estado-natal em Greetings from Michigan, the Great Lake State ou o Illinois, estado que não é o dele, em Illinois. Para este último, teve de pesquisar a sério, lendo livros de História, falando com pessoas, e não pegando em experiências da sua memória. Não é estranho, então, que a National Public Radio lhe tenha feito um desafio há uns tempos: escrever sobre Brinkley, uma terreola do Arkansas que Sufjan não conhecia. O resultado foi "The Lord God Bird", uma belíssima canção tendo como base o banjo e a voz suave de Sufjan. Carl Newman confessou recentemente à webzine Pitchforkmedia que escrevia primeiro a música e depois as letras, levando-o muitas vezes a cantar frases que não queria cantar por serem as que mais bem se adequam a determinado trecho musical. Não que isto seja muito novo, primeiro vir a música e depois a letra, Frank Black fazia-o no tempo dos Pixies, quando grunhia qualquer coisa por cima e depois é que via o que havia de dizer. Podemos apressar-nos e concluir que não há grande sentido nas letras de Newman, mas estaríamos a perder boa parte da sua piada. Referências à cultura pop (que "apanhou" do seu companheiro de armas Dan Bejar), a equipamento de destruição ou outras brincadeiras deliciosas são o que podemos encontrar nas suas canções. E aquelas melodias, e harmonias de voz, quando a sua voz se junta à da belíssima diva indie Neko Case ou à do já citado Dan Bejar.

Estes dois modos de escrever podem ser um golpe no estômago de gerações e gerações de putos indie com blogues e livejournals que passam a vida com os sentimentos à flor-da-pele citando as letras dos seus artistas favoritos, um rapaz que quando fala na primeira pessoa está a narrar vidas de gente que nunca conheceu ou outro que só pensa nas letras depois, vendo-se por vezes obrigado a cantar aquilo que não sente nem quer cantar. Os putos estão a ouvir algo falso ou pouco honesto. Mas quem é que quer saber disso? Pensar nisso só retiraria o prazer da música, e isto não é novidade nenhuma, nem sequer na música indie. Morrissey cantava nos Smiths frases como "Oh let me get my hands on your mammary glands" e, ao mesmo tempo, era celibatário, por exemplo.

Sufjan Stevens Come On! Feel the Illinoise!
Asthmatic Kitty

Sufjan Stevens vem da folk, da tradição americana da arte de escrever canções. Mora e gravou Illinois em Brooklyn com os Illinoisemakers (em Michigan chamavam-se The Michigan Militia basicamente, ele em quase todos os instrumentos e os amigos nos coros e nas passagens mais difíceis de tocar nos instrumentos). Os 70 minutos e pouco do disco caracterizam-se por canções, algumas mais "enormes" do que outras (é a diferença entre o "muito bom" e o "excelente"), mas todas elas óptimas, e devaneios curtos de drones e outras brincadeiras que acabam por aborrecer depois de muitas audições. O nome de cada tema, de cada canção, é quase como um poema em si mesmo, como faziam, por exemplo, os portugueses Santa Maria Gasolina em Teu Ventre! Veja-se, por exemplo, logo a canção inicial, “Concerning the UFO Sightning near Highland, Illinoisâ€, que começa com um piano sonhador e a descrição de um óvni, uma mediação sobre incarnação e estrelas, no falsete soberbo de Sufjan (uma das maravilhas do mundo). Assim, às vezes os nomes caem em absurdo, mas são sempre deliciosamente divertidos e hilariantes. Até no booklet que acompanha a edição em CD o sentido de humor de Sufjan transparece. Por exemplo, na lista dos músicos diz-se que Sufjan tocou as suas flautas de bisel tenor, soprano e sopranino, mas teve de pedir emprestada à Monique a alta. E, a seguir aos nomes das pessoas que tocam diferentes instrumentos, existem comentários como “Man, he’s good!†ou “Wowâ€.

Parte-se à descoberta de um estado, o segundo dos 50 (mas Sufjan, entretanto, já disse que nunca fará um disco para cada um dos estados, já que nunca escreveria sobre o Texas), a partir de um OVNI. Surge um coro de vozes numa “canção†(sem letra) com o maior título do disco: “The Black Hawk Warâ€. Os nomes abreviados das canções aparecem em maiúsculas e as outras brincadeiras em minúsculas, nos próprios títulos das canções. Logo depois, “Come on! Feel the Illinoise!†traz-nos metais e uma canção brutal a 5/4 que mete toda a gente logo a dançar. Tem duas partes diferentes, como a sua “irm㆓The Tallest Man, the Broadest Shouldersâ€, quase no final do disco, esta última tendo palmas lúdicas que nos fazem lembrar como era bom acompanhar com palmas temas como “Raspberry Beret†do Prince. “John Wayne Gacy, Jr.â€, falsete, guitarra e a humanização de um serial-killer fazem uma das mais surpreendentes canções do ano. “His father was a drinker / and his mother cried in bed†dão o mote para uma vida que acabou com muitas outras vidas. “Twenty-seven people / even more / they were boys / with their cars / summer jobs / oh my god!â€. No fim, diz que “in my best behavior / I am really just like him†e, a acabar, suspira de alívio, como se lhe tivesse custado imenso dizer isto. Quer seja um esquema para dar um pouco de humanidade a uma maneira “artificial†de criar, ou quer seja mesmo sentido, queremos lá saber. O que conta é o produto final.

“Jacksonville†é uma cidade e a sua canção correspondente tem uma melodia de órgão viciante no refrão, enquanto “Decatur†rima com “emancipator†na pessoa de Abraham Lincoln. Mas a estrela do disco é “Chicagoâ€. Uma das melhores e mais tocantes canções do ano, começa com glockenspiel e logo entra uma bateria a partir e tudo pára, começando Sufjan a cantar: “I fell in love again / all things go / all things goâ€. O refrão é belíssimo e algures no fim vem a confissão que faz todos duvidarem da masculinidade de Sufjan: “If I was crying / in the van / with my friend / it was for freedom / from myself / and from the landâ€. Quem é que quer saber de preconceitos estúpidos quando estamos perante uma das canções mais inevitáveis do ano? “The Man of Metropolis Steals Our Hearts†traz, finalmente, o rock a Illinois, com guitarra e feedback e um refrão em coro: “Only a steel man / came to recover / if he had run from gold / carry over / we celebrate our sense of each other / we have a lot to give one anotherâ€. Assim, Sufjan fala das pessoas, dos homens da América profunda que trabalham e trabalham para ganhar a vida e não fazem quase mais nada. “They are Night Zombies...†tem um coro a cantar “I-L-L-I-N-O-I-S†e fala de (duh) zombies.

Ao chegarmos a “Out of Egypt...â€, vemos que a viagem pelo estado não aconteceu sem alguns percalços e foi algo cansativa, mas mesmo assim extremamente recompensadora. E já não queremos saber da falsidade que pode estar por detrás de tudo.

The New Pornographers Twin Cinema
Matador

Carl Newman militou nos Zumpano e em mais alguns projectos já finitos de power pop. Tem um disco a solo, The Slow Wonder, que editado no ano passado e tem vindo a aperfeiçoar as canções e os refrões e os power-chords há já algum tempo. Há 4 anos, que ele e a crème de la crème da cena indie canadiana se dedicam aos New Pornographers. Twin Cinema não destoa dos outros dois discos, Mass Romantic e Electric Version, mas às primeiras audições soa (erradamente) a desilusão. Mas logo que nos entram os riffs de guitarra, os sintetizadores, o jogo de vozes, os refrões e uma maior importância dada à bateria de Kurt Dahle, já não há maneira de saírem.

“Twin Cinemaâ€, a faixa de abertura, traz-nos dois ecrãs de cinema, lado a lado, “they’ve shown this on both screensâ€. A meio há outra melodia, outra parte da canção, não se seguindo à risca a estrutura verso-ponte-refrão-verso-ponte-ponte-refrão-refrão-refrão. Nota-se logo que há pormenores e melodias que é preciso encontrar e conhecer com calma. “The Bones of an Idol†é veículo para a voz de Neko Case brilhar, com dois pianos e coros “aaah-aaah†e “oooh-ooohâ€. Os “aaah-aaah†e os pianos voltam em “Use Itâ€, para batermos o pé, com um refrão que diz “they had to send the wrecking crew after meâ€. “The Bleeding of Heart Show†é balada como não conhecíamos nos New Pornographers, só em Carl Newman a solo (sob o seu alter-ego AC Newman, que assina as canções neste novo disco dos NP), mas que cedo ganha alguma força e poder, já que as canções nunca se mantêm iguais. Também tem “oooh-ooohâ€, como qualquer canção pop à séria que se preze, mas acaba com uns “eeeh laaah-eeeh laaah†quase selváticos.

“Jackie, Dressed in Cobras†traz guitarras distorcidas e devaneios na bateria, e é uma composição de Dan Bejar, onde este menciona Nova Iorque e finalmente selvas. “The Jessica Numbers†é uma canção viciante, com uns primeiros dez segundos de bateria forte e guitarras, domados quando entra a voz de Carl Newman. Há guitarra acústica como em “These are the Fablesâ€, que começa como balada para Neko. No fim tem baixo, bateria e pianos, sem guitarra. “Sing me Spanish Techno†é a melhor canção do disco, com um riff viciante onde encaixa depois a frase “listening too long to one songâ€. Acaba por ser isso que queremos fazer quando ouvimos a canção pela primeira vez. Cantem-nos techno espanhol, por favor. “Broken Breadsâ€, de Dan Bejar, tem os “larara†que lhe conhecemos dos Destroyer e sintetizadores über-cool. “Streets of Fire†tem glockenspiel e melódica, igrejas a arder “sweet sweet fires in the streetâ€. Nem sequer nos importamos por a parte da melódica ser perigosamente parecida com a de “Here Comes the Nightâ€, do disco This Night de Destroyer, já que é a mesma pessoa, Dan Bejar, a escrever.

Techno
espanhol e igrejas a arder não são propriamente as melhores maneiras de vender Twin Cinema, mas que certamente lá estão, estão. A forma como a escrita “artifical†de AC Newman se junta a outras vozes, a de Neko Case e Dan Bejar (que só assina três temas dos catorze que aqui encontramos) continua a ser óptima. E, mesmo continuando a fazer o mesmo que fazem desde Mass Romantic, os New Pornographers estão mais maduros e talvez melhores, podendo até ser que o sucesso meta-indie lhes chegue agora. Na primeira semana após o seu lançamento, Twin Cinema vendeu 22 mil cópias, e, apesar de ainda não aparecerem no Cribs da MTV ou na banda sonora de The O.C., pode não faltar muito para isso acontecer. E só será merecido.


Mesmo que nenhum dos discos resulte extraordinariamente bem ao vivo (só podemos supor, através da prestação de Sufjan Stevens no programa Morning Becomes Eclectic da rádio KCRW, onde o trompetista fartava de se enganar e da prestação dos New Pornographers em Late Night with Conan O’Brien, onde a voz de Carl Newman estava, à falta de melhor palavra, manhosa e à qual Dan Bejar não compareceu), são ambos óptimos discos de pop à margem lançados em 2005. Do Van Dyke Parks de Brooklyn-via-Michigan ao cenourinha canadiano, temos dois excelentes escritores de canções cujos métodos podem ser questionáveis, mas cujo resultado final é indiscutivelmente bom e recompensador.

Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net

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