As melhores canções de 2010
· 01 Fev 2011 · 22:18 ·

© Teresa Ribeiro


Estão cada vez mais por todo o lado e com rédea solta; criam adição, criam vício, destroem lares. Toda a gente conhece casos assim e não existem grandes leis que defendam os Homens delas. Não tardarão nada a ser estudadas pela Universidade de Wisconsin pela profunda capacidade de dividir e ao mesmo tempo unir os povos e pelo contributo para a criação de um património mundial invisível de grande valor emocional. São ao mesmo tempo geradoras e destruidoras de sonhos, forma e estilo de vida. Falamos obviamente das canções que, ano após ano, veiculam mensagens políticas, analíticas, amorosas, tenebrosas, polémicas, endémicas; frases que circulam de blogue em blogue, de post de Facebook em post de Twitter, trauteadas pela rua na mais bonita liberdade. Feitas em estúdio recorrendo às mais modernas técnicas de produção, saídas do quarto graças à junção de esforços de um solitário sonhador. Mas feitas, sobretudo, para usufruto de quem quiser dedicar-lhes algum tempo da sua vida. Cada vez mais misteriosas, cada vez mais importantes. As seguintes, fizeram desta redacção uma redacção mais feliz e com motivos para recordar 2010 como um ano de vícios saudáveis.

André Gomes · Bruno Silva · Hugo Rocha Pereira · Nuno Catarino
Nuno Leal · Paulo Cecílio · Pedro Rios · Rafael Santos · Simão Martins



André Gomes

 

1

Caribou
"Sun"

O Sr. Caribou não lançou só um dos melhores discos do ano; foi também responsável e culpado por gravar e – que lata – mostrar ao mundo algumas das canções mais incendiárias e sensuais que 2010 teve para contar. É só luxo, sedução: é aquele extra necessário de confiança para arriscar um flirt com a miúda que está ao fundo da sala com olhares arriscados. É um escape: foi tudo o que 2010 precisou por vezes para parecer, aqui e ali, menos merdoso. Tanta sumptuosidade merece ser celebrada vez sem conta.

2

Broken Social Scene
"All to All"

Pode parecer exagero mas "All to All" é provavelmente a canção que faria um juri salvar os Broken Social Scene se estivessem num tribunal em defesa de acusações graves puníveis com pena superior a 25 anos. É uma canção que tanta gente poderá ver como redentora. Não de uma carreira, porque estes canadianos deram-nos sempre coisas boas, mas de algo bem maior, algo que só pode ser contado e testemunhado por quem deu de caras com ela. Não tem grande explicação: mas há ali qualquer coisa no ar que faz deste mundo um sítio melhor para se viver.

3

Ariel Pink's Haunted Graffiti
"Round and Round"

Houve quem se apressasse a pensar que o norte-americano Ariel Pink tinha vendido a alma ao diabo quando anunciou que ia assentar arraiais na 4AD. Nada mais errado, nada mais afastado da verdade. Before Today está apinhado de boas canções que, mantendo o espírito lo fi, colocam finalmente Ariel Pink no sítio que merece. Como capitão de todas as pequenas grandes canções que nascem tortas mas cedo se endireitam, lembrando outras décadas mas sobretudo chamando a atenção para o melhor que esta pode ser.

4

Menomena

"Killemall"

Se o muito entusiasmante Mines confirmou os Menomena como uma das bandas a ter debaixo de olho nos próximos anos (e muitas dúvidas havia), "Killemall" confirmou-os, no pequenomundo deste disco que tantas e tão diversas opções oferece, como construtores de canções com a geometria suficiente para deixar transparecer um turbilhão de sensações que alimentam esta canção à beira de um precipício emocional mas sempre segura das suas qualidades. Um verdadeiro mimo em forma de canção, um espaço para aprender a respirar.

5

Gayngs
"The Gaudy Side Of Town"

Se é verdade que "The Gaudy Side Of Town" nada tem que ver com o resto do disco de estreia do supergrupo Gayngs, também não é mentira que a mesma canção não tem nada que ver com o resto do mundo. de uma sensualidade que não existe (e por isso foi inventada), "The Gaudy Side Of Town" cria um espaço próprio para si como quem reinvindica na sua própria casa um estado independente do país em que se encontra. Não tem a ver com nada. E, se calhar, nem existe e isto é tudo imaginação.

6

Julian Lynch
"Mare"

Está no sangue dos Lynchs. Criar imagens onde julgamos não existir espaço para as ver nascer. Julian Lynch constrói canções com pouco; de tal forma que é difícil perceber se são mesmo canções. Vivem naquele delicioso limbo da arbitrariedade, da liberdade de não haver refrões, da autonomia para ser muito mais do que uma canção. Quando falamos em Julian Lynch falamos em transcendência: em enfiar mil e uma imagens em duas ou três ideias simples. A palavra "sonho"- ler "fantasia" - foi inventada para servir canções assim.

7

Avi Buffalo
"What's In It For? "

Pontos para a Sub Pop, que até andava a precisar deles. Dentro do disco surpresa dos Avi Buffalo há um espaço gigantesco para sonhar e, entre outros motivos para rejubilar, existe "What's In It For?" uma canção que, tal como o seu vídeo oficial, oferece todas as cores possíveis no mundo e uma luminosidade que vem das guitarras tanto como vem da voz impossível de Avigdor Zahner-Isenberg que é um livre-passe para sonhar acordado. Às tantas a luz é tanta que não nos resta senão colocar as mãos à frente dos olhos e deixar que os ossos aqueçam num dia como qualquer outro.

8

El Guincho
"Soca Del Eclipse"

Num disco cheio de bons motivos para celebrar, "Soca del Eclipse" ajuda, no mínimo, a perceber que o que Pablo Díaz-Reixa conseguiu em Alegranza! não era apenas uma miragem mas sim o princípio de bons tempos; no máximo, "Soca del Eclipse" é uma viagem low cost a tudo o que é sol e luz, diversão. Pop que de negra tem pouco ou nada, com um cheirinho a praia e a mar. Lá ao fundo está Pablo Díaz-Reixa com os pés enfiados na areia e as mãos no ar como quem faz o convite. Será que Pop Negro sobrevive até ao próximo verão?

9

!!!
"The Hammer"

É como um pequeno terramoto. Começa de forma quase tímida mas quando a batida se impõe finalmente leve tudo à frente, sem dó nem piedade. Esta podia ser a descrição de toda e qualquer canção dos inevitáveis !!!, mas em Strange Weather, Isn't It? é o caso mais evidente de injecção de sangue na mais entorpecida das veias. É funk, é negro, é sexo distribuído como quem acabou de o descobrir e o quer partilhar com muita gente. A urgência de sempre, bola inteira em força que podia ser insípida mas não é: tem classe a que os !!! nos habituaram.

10

Delorean
"Stay Close"

Se um certo indie espanhol precisasse de mais créditos para se afirmar como fonte de criatividade, os Delorean, amados e odiados, poderiam ajudar a tirar as dúvidas entre um mojito e um mergulho no mar. Tal como o compatriota El Guincho, os Delorean assentaram arraiais na praia, perto do mar, e não têm medo de se mostrar demasiado felizes. Deram o braço à música electrónica, convidaram uma sereia para as backing vocals e lançaram-se em busca de uma pop tropical que tem validade o ano todo. Um entusiasmante regresso ao futuro.


Bruno Silva

 

1

Cassie
"Skydiver"

Todo o backlash contra a Cassie circa 2006, veio a dar origem a um culto crescente em meios mais subterrâneos (remixes de gente como Deadboy ou Brackles, devoção de How To Dress Well, samplagens da "Me and U" por Four Tet e Kingdom, e acto contínuo, um artigo sobre tudo isso no Guardian), que podendo não ter quaisquer resultados práticos para que Electro Love venha a ser uma realidade (a especulação toma contornos de Smile e Chinese Democracy), não deixam de fazer incidir uma nova luz sobre ela, proveniente de universos tendencialmente suspeitos. Claro que toda esta admiração carrega muitas das vezes o seu quê de trágico, com conversas cíclicas em torno das suas fragilidades vocais a traduzirem-se num tendência fetichista que teima em ignorar uma capacidade única de fazer convergir emoções de um modo idiossincrático. Como se fosse a faceta gélida de "Me and U" e "Long Way To Go" (apesar de brilhantes) tudo aquilo que ela representa, quando coisas como "Just One Night", "Is It You" ou "Ditto" conseguem atingir um patamar de revelação quase inatingível pela sua transparência, numa antítese para com a exuberância vocal que permeia muito do r'n'b enquanto recurso estilístico para a ressonância emocional. "Skydiver" surge num contínuo de leaks basicamente superiores a tudo aquilo que tem vindo a ser editado formalmente e que já revelou pérolas como "Thirsty" ou "Summer Charm". Coadjuvada de modo irrepreensível pela escrita do James Fauntleroy e por uma produção densa, mas cristalina de Chris & Teeb, "Skydiver" ecoa toda a vulnerabilidade de uma persona absolutamente singular que cedo viu fechadas as portas para o estrelato, mas tem vindo a persistir na invisibilidade de um modo admirável.

2

T2 ft. H Boogie
"Better Off As Friends (Lil Silva Remix)"

Por vezes, o final de uma relação assemelha-se ao Apocalipse. A batida nervosa desta reconstrução da "Better Off As Friends" pelo Lil Silva (que teve um ano marcado por bangers tão importantes como "No Hooks" ou "Night Skanker") parece anunciá-lo de modo mais do que incisivo, mas é a ponte de sofrimento resignado que faz dela um acontecimento tão gigantesco. Paragem abrupta para a entrada de uns sintetizadores agrestes que se assume como vórtice estrutural de uma construção hi-tech minuciosamente elaborada. Corta com o frenesim rítmico no momento em que acumula toda a tensão, para a libertar subitamente num sopro que é a constatação de uma inevitabilidade. A voz refracta-se como se recriando o destruir de uma relação que não pode subsistir além da amizade. Esta, afigura-se como impossível. O "la la la..." é o adeus. Arrepiar caminho.

3

Hyetal
"Phoenix"

Numa altura em toda a gente anda nostálgica por uns anos 80 que parecem nunca ter acontecido, seria mais do que natural que também o cinzentismo da música de dança made in UK começasse a olhar para o presente de um modo igualmente apaixonado. Felizmente, o músico de Bristol deixou de lado o cabotinismo e a tendência para a desolação urbana do post-dubstep vigente, para erigir uma peça que agarra mesmo em tácticas dos anos 80 sem soar minimamente revisionista. O reverb de tarola do r'n'b pré-Timbaland (sequenciado a la "I Would Die 4 U") encontra a melancolia nocturna de "Crockett's Theme" como que anunciar a torrente emocional que aí vem. Uma linha de sintetizador estupidamente grandioso que consegue convocar todo o sentimento de triunfo, desespero, esperança e vazio emocional de um lifestyle urbano bipolar. Entre a hiperactividade e a apatia. Os Ultravox cantaram sobre "dancing with tears in my eyes para bonito efeito, mas isto é mais o regresso inebriado a casa.

4

Screama ft. Farah

"Kiss Me There"

Aparentemente, não existe nada de particularmente surpreendente em "Kiss Me There" para além do seu apuro formal. A produção do Screama pauta-se por uma estrutura rítmica e harmónica clássica, mas é a prestação da Farah que acaba por fazer de um delicioso exercício de prazer veraneante algo bem mais envolvente. Sem forçar qualquer tipo de virtuosismo vocal, pauta-se por uma humanidade desarmante que consegue fazer confluir todo o miasma emocional que se pretende numa narrativa sobre o desejo, de um modo bem mais intrigante e cantarolável do que qualquer tendência acrobática. Além disso, quando é que foi a última vez que se ouviu uma referência tão óbvia ao cunilingus ser tratada com tal naturalidade?

5

Sightings
"Tar & Pine"

Por muito que tentassem contrariar essa ideia, estes três pastorinhos do noise sempre esconderam sobre o ruído bruto muito mais música do que uma filosofia "vale tudo menos o lava-loiça" poderia abranger. De uma displicência aparente, apenas quem tapava os ouvidos perante o escarcéu é que caiu no embuste. "Tar & Pine" é a cristalização factual dessa capacidade do trio de Brooklyn de devorar os detritos mais estrepitosos daquilo que verdadeiramente interessa (que não necessariamente do rock) para os regurgitar numa personalidade singular. Não deixa de ser uma canção rock, que pedindo meças a alguma electrónica experimental da Raster Noton no início, rapidamente encarreira numa batida profunda e baixo martelado com a voz preguiçosa de Mark Morgan a fazer as hostes. Generic no fundo de um poço de siderurgia, num fluxo sonoro laboriosamente estruturado. Já não estamos no campo da impenetrabilidade de "I Feel Like Porche", mas antes num campo onde cada particularidade harmónica tem o seu lugar definido. Atente-se numa que guitarra tanto incorre num riff embriagado como se expande para o ruído branco final, mas nunca se auto-destrói. Nem cérebro, nem colhões, antes o meio-termo que vale (mesmo) a pena.

6

Drake ft. Alicia Keys
"Fireworks (Deadboy's T€ARJ£RKING Slo-Mo House Edit)"

O Paulo Cecílio foi bastante assertivo quando afirmou que "Fireworks" na sua forma original era "uma bela merda mesmo com presença da Alicia Keys". Ou seja, o brilhantismo desta revisão está exactamente no facto de não ter mantido qualquer ponto de contacto com essa mesma. Como único elemento presente, até a voz da Alicia Keys foi transmutada (via pitch bender) ao ponto do anonimato, para se assumir como o elemento central que amplifica todo aquele limbo entre euforia e tristeza que o piano anuncia. Está tudo no subtítulo : A batida a soluçar com elegância em câmara lenta, o baixo plácido, e, acima de tudo, um verdadeiro tearjerker.

7

Ward 21 ft. Tifa
"High Come Down"

No meio de tanta choradeira e auto-tune, subtilmente o Dancehall parece estar-se a fragmentar até a um ponto em que se torna quase impossível encontrar um contínuo de tendências. Disparando um pouco para todo o lado, como se o afastamento da realidade pós-Mavado fosse a única premissa base. "High Come Down" é uma dessas anomalias. Uma aquosidade sonora contaminada por sons rasteiros. Fantasia erótica que flutua numa dimensão etérea, conduzida por teclados suspensos, deixa no ar uma falsa batida, quando na verdade é o baixo que lhe confere a cadência necessária para o movimento lascivo. Sem precisar de repetir pussy o maior número de vezes possível para fazer passar a mensagem de que foder é mesmo a melhor coisa mundo, numa feliz analogia com estados mentais alterados. Isto é, o mais próximo que existe para o comum dos mortais de fazê-lo no espaço.

8

Illmana ft. Tazmin
"Kiss You"

Apareceu logo no início de 2010 acompanhada pela sua gémea confrontacional "Ready Fi De War" (com a presença da Stush) e acabou sem rival no campo da dança perigosa com voz luxuriante (apesar de coisas tão boas como a "Stupid"). Transportando a ameaça subliminar do Grime para ambiências marcadamente mais misteriosas, numa transversalidade entre a entropia sensual de algo como a "I Wish" de X5 Dubs com a Teresa e a opressão rítmica da soca a 130 bpm`s. Quando a Tazmin canta <i>"I wanna kiss you 'till you fall in love"</i> é como se esse amor fosse a merda mais sufocante de sempre, e não as habituais borboletas no estômago. Paradigma de um certo desespero dançável na UK Funky que me parece, tantas vezes, a melhor coisa do mundo, sem que precise de recorrer a grande raciocínio analítico.

9

The Diplomats
"Salute"

Portanto o núcleo duro dos Diplomats (aka Dipset) decidiu deixar de lado as quezílias que levaram à "dissolução" da crew de Harlem em 2005 e planeia um regresso "bombástico" com o terceiro Diplomatic Immunity lá para 2011. Como cartão de visita, "Salute" não terá sido aquilo que os fãs de longa data estariam à espera, acabando por ficar patente em inúmeros blogs a ideia de uma semi-desilusão. Liricamente, as diferenças nem são notórias, com a faceta mais aggro do Cam'ron (com uma inevitável referência a True Blood) a ter contraponto com a maior suavidade do Juelz Santana no último verso. Terá sido então, a produção densa de aarabMUZIK a servir de instigador para a desconfiança. Por aqui, é uma das suas mais valias. Aquele sintetizador alarme a indicar um ritmo frenético (espera-se algo na senda do crossover entre a soca e o grime da "Message Is Love") que nunca chega a acontecer, com a batida profunda a impor um mid-tempo flutuante que carrega tudo aos ombros. Em passadas vigorosas.

10

Eastwood ft. Veve
"Right There"

"Right There" acaba por encerrar um microcosmos daquilo que a UK Funky tem vindo a calcorrear desde o paradigma "The Cure And The Cause". Sem qualquer ponto de contacto com a House que servia de âncora a muitas das produções iniciais, "Right There" faz com que um piano já bastante desconcertante por si só, se veja desamparado daquele broken beat inicial para ir ao encontro de uma profusão de batidas sincopadas que parecem marchar sobre si próprias continuamente. Como que a unificar tudo isto, surge uma linha de sintetizador em sintonia harmónica com o piano omnipresente, deixando espaço para uma prestação da Veve que se assemelha ao refutar de toda esta conjectura, sem acessos histriónicos nem candura. Antes num fluxo sonoro capaz de envergonhar muitos mc's, sem nunca deixar de ser perfeitamente cantarolável dentro de um espectro próximo do freestyle. No final de tudo, é intrigante como uma malha que dispara em tantas direcções diferentes simultaneamente consegue soar tão coesa. E, em havendo coragem, memorável.


Hugo Rocha Pereira

 

1

Aloe Blacc
"I Need a Dollar"

Lamento desiludir o Carlos Queirós, que tanto apostou em "I've Got a Feeling", dos Black Eyed Peas, mas esta fica como A Música do ano transacto. Por várias razões. A principal é a arte com que Aloe Blacc sublima a crise, no ano de todos os perigos, pondo o mundo a pedir um dólar – ou um euro, ou um dracma... Afinal, isso é uma coisa transversal: toda a gente precisa de dinheiro, e mesmo quem não precisa quer sempre mais. E Aloe Blacc fá-lo através dum beat irresistível, daqueles a que não cansa voltar. Por mais vezes que oiçamos "I need a dollar, a dollar, a dolar is what i need, hey, hey!"

2

Gil Scott-Heron
"Me And the Devil"

GSH a cantar trip hop?! Uma lenda-viva que subiu das profundezas pode tudo. E quando o faz, é melhor que ninguém na tarefa. O clássico de Robert Johnson é genial, blues cru que resulta de um pacto de sangue demoníaco. Esta versão contemporânea não lhe fica atrás. Tem uma intensidade e um negrume que nos leva a dar uma volta soturna pelos recantos menos aconselháveis da cidade. E não sabemos a que horas regressaremos a casa, se é que alguma vez iremos descobrir o caminho de volta. Adenda para quem nunca ouviu a música: na primeira vez vejam o video – este é daqueles casos em que as imagens acentuam o poder do som e das palavras.

3

PAUS
"Mudo e Surdo"

"Mudo e Surdo" é uma música que não cabe no formato tradicional a que se costuma chamar canção; o seu potencial revela-se sobretudo ao vivo, numa dinâmica onde pode esticar a corda e bombar sem amarras – como sucedeu, por exemplo, no "Só desta vez" em que os PAUS convidaram os djs Riot (de Buraka Som Sistema) e Ride para implodirem o piso inferior do Lux. Aqui não se canta, vocaliza-se: e os diversos «Ohh-Ohh-Ohh!!...» (que complementam as "duas baterias siamesas, o baixo maior do que a tua mãe e as teclas capazes de te fazerem sentir coisas estranhas") ficam a martelar na cabeça dos corpos amaciados à traulitada.

4

Massive Attack

"Girl I Love You"

"Girl I Love You" demonstra que a parceria entre o colectivo de Bristol e Horace Andy continua a dar bons frutos. É uma declaração de amor eterno, feita por uma das vozes mais distintas do roots reggae jamaicano e uma banda que regressou ao activo com o seu melhor álbum desde Mezzanine. O tema começa em jeito de dub – negro e narcótico quanto baste – para depois acelerar, descansar um pouco (sempre com uma batida a estabelecer as pontes entre as várias fases da lua) e voltar a subir de ritmo, antes de entrarem os metais em ebulição. O vibrato de Horace "Sleepy" Andy faz o resto.

5

Aloe Blacc
"Politician"

Esta vai com dedicatória especial. Para os políticos que são «hungry wolves / dressed like sheep / they shake our hands / but stab our backs» - quase todos, acrescentaria eu, excepção feita a alguns coelhos tirados da cartola. Aloe Blacc, no exercício de grande eloquência verbal e vocal, embala como um projéctil na direcção dos nossos espíritos, colectivos e individuais. Soul de boa colheita, com uma salutar consciência social, na senda de manifestos e interrogações de Marvin Gaye, um dos ícones maiores deste género que regressa em grande estilo. «Politicians, you better get right / this conditions ain't no good for life.»

6

Gil Scott-Heron
"I’ll Take Care Of You"

Uma secção de cordas; piano. E uma voz densa – neste caso terna, contrastando com a que se ouve em "Me And the Devil", outra grande malha deste álbum. É o bastante para Gil Scott-Heron pegar no original de Bobby "Blue" Bland e construir uma canção de amor à sua medida. Das que se dedicam a alguém cujo coração está petrificado como um pássaro que não consegue levantar voo por ter uma asa partida. E a quem se transmite empatia e compromisso por já se ter passado pelo mesmo processo de dor, cicatrização e cura. «Just as sure as one and one is two / i'll take care of you» - alguém consegue definir melhor o romantismo?

7

Mão Morta
"Teoria da Conspiração"

Quem é que disse que a passagem dos anos amolece o andamento das bandas? Mais de duas décadas depois, estes bracarenses continuam a mostrar como é que se faz… rock em português tão bem esgalhado que certas bandas com acne e a cheirar a leite bem podem corar de vergonha. "Teoria da Conspiração" é (quase?!) hardcore. Um ritmo que não dá tréguas (antes pulsa como um coração em fuga, atravessando a pista do aeroporto para desaparecer no bosque que a circunda) e uma letra que veste a música a rigor. «Com que então, conspiração!» resume o ambiente de paranóia e manipulação mediática que Adolfo Luxúria Canibal descreve de forma cinematográfica.

8

Feromona
"Desalento"

Vale a pena transcrever um excerto deste tema: «Não tenho jeito para gerir o património / nem sou pessoa para aderir ao matrimónio / tenho uma voz que é mediana / e tenho sonhos / mas sei maneira de atingir / dias risonhos.» Estas são as palavras iniciais de Diego Armés. As restantes estão ao alcance de quem quiser ouvir a composição, que de certa forma se distancia do grunge-rock mais associado a estes rapazes. A música avança calmamente, permitindo que se preste especial atenção à letra, sem distorções nem descargas de energia. "Desalento" não é uma canção de efeito imediato, mas uma peça de fino trato.

9

Sharon Jones & the Dap Kings
"I Learned the Hard Way"

2010 foi o ano de Aloe Blacc. Mas Sharon Jones e os fabulosos Dap Kings – que são bem mais do que a banda que "segurava as pontas" nos concertos de Amy Winehouse – também deram cartas. E o tema-título do último álbum foi um dos seus trunfos. Revela todos os componentes de uma grande canção soul. Versa sobre uma traição amorosa; o vozeirão de Sharon Jones (a melhor aproximação feminina a James Brown – quem já a viu actuar sabe que isto não é exagero) cai-lhe que nem uma luva; os coros acentuam o dramatismo da história relatada; e uma secção de metais vai marcando as variações de registo da música.

10

Sade
"Soldier of Love"

No início soam trombetas, fazendo anunciar a entrada no campo de batalha que sempre é o amor. Sade Adu, antes uma smooth operator, regressa com trajes de combate. Destroçada mas viva e pronta para ir à luta. A música tem vários sabores: um travo à pop dos 80's nos arranjos; quase trip hop na cadência repetitiva e algo inebriante. O ritmo funde-se com a voz melíflua e quente, que envelhece como um bom vinho. De acordo com Confúcio, «o mais poderoso guerreiro é aquele que se conquista a si próprio». Ao longo da canção, Sade vai repetindo «i have the will to survive» - é uma guerreira poderosa como poucas.


Nuno Catarino

 

1

Kanye West feat. Pusha T
"Runaway"

Escolha óbvia, sabemos bem. Do disco-monumento de Kanye poderíamos, aliás, escolher qualquer coisa ("Monster", "Power", "All of the lights", "So Appalled", etc.), mas tem mesmo de ser esta. As notas do piano, incessantemente pingadas, são o eixo desta proto-balada, onde Kanye fala sobre os problemas da vida, sobre como engatar todas as gajas que quer é um problema do caraças. A tensão cresce até que chega o brinde aos "douchebags" e a sugestão ao "interesse romântico" para que fuja para longe. Ela que se vá embora, mas nós não conseguimos sair disto. O megalómano vídeo de trinta e tal minutos faz justiça à canção. A incredibilidade está a passar por aqui.

2

Ariel Pink's Haunted Graffiti
"Bright lit blue skies"

Before Today, o grande disco do ano do Bodyspace, está cheio de pérolas, de temas originais e regravados, mas um dos grandes marcos desse disco do ano foi também esta repescagem, versão de um tema obscuro dos 60s. Ariel Pink manteve-se fiel ao original, pouco mexeu naquilo que já era bom, e aquelas guitarrinhas nervosas alimentam uma eficiência pop que desemboca num refrão simples. A canção é luminosa e o geniozinho de L.A. tomou-a como sua, para fazer de 2010 um novo 1966 – e, pelo menos naqueles dois minutos e meio, tudo funciona na perfeição. O calorzinho do verão passou por ali.

3

Papa Topo
"Lo que me gusta del verano es poder tomar helado"

Vindos de Espanha, com selo da recomendável Elefant Records, os Papa Topo são um duo de Adrià e Paulita (e, sim, ainda são adolescentes). Ainda nem têm meia dúzia de canções, mas este single bastou para nos deixar viciados. Combinando os universo indie/twee com a magia açucarada das canções da Eurovisão (descobertas no youtube, claro), estes Papa Topo fazem canções com um incrível sentido pop, como se vivessem num genérico de um desenho animado. Doce e naïf, como tudo o que interessa na vida: "chocolate, fresa y nata, stracciatetla y naranja, de vainilla o after-eight, el helado es el rey". Ainda falta muito tempo para o verão e o regresso dos gelados, mas podemos sempre ir ali à Santini.

4

Vijay Iyer

"Human nature"

A solo, o pianista Vijay Iyer dá mais um passo em frente, depois do excelente Historicity do ano passado. Servindo-se de poucos recursos, mas aplicando-os com magnífica inteligência, Iyer desenvolve uma música feita de detalhe, de tensão, de sobriedade. Reinventado a belíssima composição de Jackson, Vijay espreme-lhe a gordura, deixando-a nua na sua essência, trabalhando depois à volta da melodia de forma obsessiva. A isto chama-se elegância.

5

Panda Bear
"Last night at the jetty"

Uma das grandes desilusões do ano que passou foi o sucessivo adiamento da edição do prometido Tomboy. Sem disco pronto, Noah Lennox compensou com o lançamento de um conjunto de singles, cada um melhor que o anterior, que nos deixaram a salivar pelo disco que nunca mais sai – é o Chinese Democracy da nossa geração (© Pedro Rios). Um desses singles é este "Last night at the jetty", melodia épica que vai crescendo até chegar ao refrão delirante (e isto poderia ser Animal Collective, a melhor banda da década que passou). Mesmo sem álbum, sabemos que podemos sempre contar com o nosso panda.

6

Gil Scott-Heron
"I'm new here"

O regresso de Gil Scott-Heron foi um acontecimento enorme e uma surpresa para os fãs dos seus discos dos 70s - que há muito o julgavam perdido para sempre. Foi um regresso aos discos, aos concertos (grande momento na Aula Magna), à vida. E seria difícil escolher outro tema que fizesse tanto sentido como esta versão de Bill Callahan (retirado da obra-prima A River Ain't Too Much To Love). Scott-Heron rouba a música com a sua voz grave, gasta, e por cima da guitarra dedilhada parece que está a contar a sua própria história, de alguém que viveu muitas vidas (mais vidas do que devia) e no regresso ao mundo este parece-lhe desconhecido.

7

El Guincho
"Bombay"

Foi um dos vencedores do melhor festival do ano – o Milhões de Festa, claro. Pablo Díaz-Reixa, AKA El Guincho, fez a festa ao vivo em Barcelos e voltou a convencer com Pop Negro. Com este disco voltamos a ser invadidos por aquela irresistível pop tropical, cumprindo as expectativas deixadas com Alegranza (2007). Este "Bombay" é a melhor colheita deste novo álbum e o vídeo é um assombro, delírio visual imparável. O ritmo solarengo contrasta com o drama das palavras de Díaz-Reixa ("te miro desde arriba, por si, todo se termina / quiero que me recuerdes como las primeras veces"), mas essa incoerência não interessa nada. Viva o mamaçal dourado.

8

Brian Wilson
"The Like In I Love You"

O génio dos Beach Boys revisitou o cancioneiro de Gershwin e o resultado não foi memorável. As canções (belíssimas, intemporais) receberam um tratamento genérico, sendo o resultado globalmente banal. Mas esta é a excepção, destacando-se do resto. A canção ganha pelo facto de não ter sido gravada anteriormente, tendo aqui o seu primeiro momento de grande exposição pública. Canção de cânone clássico, condensa uma melodia envolvente, e a letra, romântica como deve ser, vive de um divertido jogo de palavras. Na voz, Wilson cumpre o seu papel. E isso basta. Estamos em 2011 e temos um aqui standard fresquinho.

9

Janelle Monáe feat. Big Boi
"Tightrope"

Foi o fenómeno pop do ano, foi o furacão que varreu o Tivoli (sortudos aqueles que estiveram no Super Bock Em Stock). Música frenética, reverente do R&B clássico mas com uma energia imensa, "Tightrope"é um dos grandes momentos do imenso The ArchAndroid. Janelle não tem apenas a melhor poupa da pop desde Morrissey, é também um fenómeno incrível que condensa os melhores ingredientes da música negra (groove, alma, energia). Com justiça, já é uma estrela global, vai ser difícil escapar-lhe nos próximos anos.

10

B Fachada
"Há festa na moradia"

Não podíamos fazer o balanço do ano que passou ignorando o bardo barbudo, que marcou 2010 com dois discos – com a tosca canção de intervenção de Há festa na moradia e a subversão infantil de É pra meninos. Sendo o segundo disco perfeitinho, o primeiro destaca-se pela rudeza daquelas canções imperfeitas. No tema homónimo Fachada descreve a organização de uma festa como deve ser, certamente inspirado por Berlusconi, que inclui desde "para as madames um menino a cada uma" até "guardar a coca junto à piscina de espuma porque esta noite não acaba sem orgia", com o objectivo final de "tentar a sorte com aquelas vagas para a maçonaria". As palavras encaixam naquela folk urgente, multi-referencial - ele fala em Merceneiro e Bonga, mas na verdade é uma esponja. Foi bonita a festa, pá.


Nuno Leal

 

1

Beach House
"Zebra"

Podia ser esta, poderia ser outra qualquer, o 3º disco dos Beach House é tão enorme que cabem lá todas as grandes canções de um ano. É aquele disco de ilha deserta, e este "Zebra" que já mexia em Dezembro de 2009 por mares pirateados de mp3, é… sem palavras. O baixo quase tirado dos CAN em "Sing Swan Song", o ritmo quase germânico, todos esses quase transplantados a peito aberto pela voz de coração na boca de Victoria Legrand, possuída por uma Nico sem sotaque. Vozes como a dela são raras e há que cuidar delas. Nos meus ouvidos pode pastar à vontade, é uma reserva protegida, um parque natural onde este "Zebra" não tem predadores, antes pelo contrário, este "Zebra" por aqui é predador, comendo volumes máximos e recordes de repeat durante todo o ano. É caso para dizer, "Zebra", ora bem, aqui entre nós, preto no branco, és a canção do ano.

2

Caribou
"Jamelia"

Vinda de um disco com tantas canções nota 10, Jamelia consegue destacar-se de alguma maneira inconsciente, apesar de um intenso combate e muitos sun sun sun sun sun sun, mas enfim, é assim que aqui aparece e se torna porta-voz de todas as outras, até porque se fosse uma lista de 30 canções, era inútil resistir, e haveria pelo menos umas 6, 7 canções de Swim. É um futuro clássico de dança, que nos aconchega de início ao ritmo ansioso de um sucessivo "tic tac" cortado por ventos gelados de cordas e a voz do senhor Daniel Victor Snaith. Bem embrulhados no ritmo, somos cercados por cada vez mais electrónica e teclas que se tornam rampa de cordas até ao grande salto antes dos dois minutos. Aqui é impossível alguém não se perder a dançar (a menos que esteja a fazer sexo), De uma maneira ou outra, ao volante dos coros extasiados de Victor, chega-se aos 3:19 a um orgasmo que corta aos 3:20 para o ponto de partida. O mesmo tic tac que nos anuncia: repeat, ouve-me lá outra vez.

3

Best Coast
"When I'm With You"

Recordar o verão de 2010, durante estes dias de inverno rigoroso, não é fácil. Quer dizer parece que não, mas é, basta ouvir uns segundos do single e faixa bónus do disco da banda de Bethy Consentino para 30º graus imediatos, verão espontâneo e instântaneo na mistura "beach-bitch" onde esta "riot-girl" cavalga como poucas. Tanto ela, como o namorado dos Wavves, casal efémero ou não, representaram o verão eterno de 2010 que atravessará qualquer ano seguinte, década, gerações, porque quer se queira, quer não, quer se ame, quer se desdenhe, este "When I'm With You" tem a eternidade de um clássico das Ronettes. Porque enquanto houver adolescentes, dos 13 aos 80, canções destas encaixam como uma luva nas mãos que entram de imediato em regime "air guitar" mal ouvem acordes deste calibre.

4

Avi Buffalo

"What's In It For?"

Outra grande canção de 1969, perdão, 2010. Outros putos que ainda não eram nascidos quando as Rickenbackers e os Fender Rhodes destilavam feitiçaria, putos que se calhar gostaram dos mais recentes Beachwood Sparks, putos que enfim têm no seu DNA a génese Americana de rock psicadélico. Melodicamente perfeita, estruturalmente pensada para nos fazer perder em viagens (então os coros finais a la Amon Duul II, ai não!), "What's In It For?" responde-se sozinha e tem a varinha de condão do xamanismo rock, felizmente ainda não perdido neste mundo de hip-hop e electros e gostos ainda mais duvidosos. Retro a rebentar das costuras, 2010 foi Grateful Alive.

5

Gala Drop
"Rauze"

Como portugueses deviam-nos orgulhar do nosso passado explorador e destemido, enzimas algo perdidos no DNA de gerações de lusos com jeito para a música (nem falo dos outros). Contudo, há excepções e mesmo dentro delas, há excepções melhores que outras. Gala Drop é das melhores excepções. Este "Rauze" é um portentoso tapete voador, entre Vasco da Gama, Harmonia e Cluster, que nos levita em segundos e por deliciosos minutos, pelos continentes onde demoravamos longos meses a chegar de caravela. É um daqueles temas que entra de rompante, uma viagem sem destino certo mas destinada à consagração além-fronteiras, porque contém a genial globalidade que a livra de preconceitos geográficos (para quem os tem). É música do mundo, aliás de outro planeta, e espero sinceramente que aos poucos, por este 2011 fora, caia o mundo, aliás o universo a seus pés.

6

Arcade Fire
"Ready to Start"

"i dont know why but this song gave me strengh to ask the girl i liked a long time to the school dance". Este é um comentário numa página youtube com esta enorme canção. E ninguém duvida do seu potencial. Tem esse poder, essa força, o toque que torna estes Arcade Fire ourives das melhores jóias de mainstream que há por aí. Porque sim, eles já têm milhões de fãs, já subiram a fasquia até aos big bucks dos pavilhões e estádios cheios, por enquanto, sem perder (apenas alguma mas quase nada) da sua qualidade genuína. O seu 3º disco foi ainda um grande disco, e Deus lhes dê talento, para entre a correria das tours e o assédio mau conselheiro da alta costura musical, continuarem assim. E neste momento estou a fazer contas, na dúvida se deveria antes ter escrito sobre Spawl II (Mountains Beyond Mountains). Deve ser um empate técnico, 200 plays vs. 200 pays no combate das duas.

7

B Fachada
"Cantiga De Amigo"

Sobre a música portuguesa sopra actualmente uma lufada de ar fresco em termos de criatividade/quantidade, é verdade, mas B Fachada não é uma lufada, é uma ventania de ar fresco que sopra o mofo para longe e nos faz redescobrir como portugueses. Proveniente de um disco que surgiu no encerro de 2009, "Cantiga de Amigo" é uma das pérolas que explodiu em todas as direcções durante 2010, para o bem ou para o mal (dirão alguns). É música que nos enche os ouvidos com palavras do vocabulário que usamos para pensar e sonhar. A famosa língua de Camões, Saramago, Gonçalo M. Tavares, Zeca, Sérgio Godinho, Palma, bem tratada, bem metricada, bem rimada, bem usada. Porque essa do "português não dá para fazer grandes canções" já tinha barbas. E curiosamente é com barbas que surge um talento destes, capaz de compôr o hino de um qualquer filme mental de polaroids de 2010. Para alguns de nós, onde me incluo, só nos resta agradecer.

8

Zola Jesus
"Sea Talk"

Podia chamar-se Émile Cristo mas é Zola Jesus, a promessa de 2009 que se cumpriu no ano transacto, pessoalmente, entre outras grandes canções, a bordo deste navio-fantasma de som. "Sea Talk" tem aquela "vibe" de uma canção perdida da Siouxsie com uns The Cure entre a fé e a pornografia. São alguns minutos de sintetizadores frios, qual cordas geladas a cobrirem de água benta em solidificação, a caixa de ritmos emprestada pelos Death In June enquanto tocam para o recolher obrigatório. É uma canção tão profunda como o oceano, em cujas águas afinal prova-se haver sereias góticas que concorrem ao Festival da Canção pela Atlântida.

9

Zoo Kid
"Out Getting Ribs"

Uma canção genuinamente de 2010, algures perdida no myspace de um miúdo de 16, 17 anos que há-de marcar 2011, pelo menos para uma imensa minoria que espera já ansiosamente pelo seu disco, sendo que esta enorme canção já tem um 7". Minimal, espartano, assente unicamente na voz e guitarra por vezes hesitante, outras vezes dedilhada em caleidoscópio, um sopro de C-86, na realidade longe da mítica cassette, o miúdo ainda nem era nascido. Mas se calhar é uma reencarnação, quem sabe? É o visual, é a maturidade do seu talento musical, suportada num outro talento brutal: a voz. E que voz, vozeirão vivido, que mais parece lip-synch para quem o vê e ouve num dos videos mais maravilhosos do final de 2010, que vai acrescentando diariamente milhares de views no youtube.

10

Women
"Heat Distraction"

Primeiros seis segundos: baixo que nos recorda de imediato a nave Silver Apples. A seguir, explosão Rickenbacker que nos leva para a The Byrdsfera acima das 8 milhas de altitude. Segundos antes de passar um minuto, paragem na cor da animação estroboscópica para uma folha em branco e uns rabiscos com as cores dos Red Krayola até chegarmos ao ponto de ebulição desejado: a voz embebida em reverb e nostalgia psicadélica de Patrick Flegel anuncia que estamos a ouvir os canadianos Women. 4:05 de duração, música dois do alinhamento do seu segundo álbum do transacto 2010, Public Strain., no geral um dos grandes discos do ano, em particular talvez o melhor disco esquecido do ano que acabou de passar. Ideal para quem procura remoínhos de eriçar pêlos, acalmar comichões cerebrais e impedir que a cera do ouvido nos convença, uma vez no 13º piso, a ir de escadas em vez apanhar o elevador.



Paulo Cecílio

 

1

The Tallest Man On Earth
"King Of Spain"

Kristian Mattson, senhor nórdico, quer ser rei de Espanha. Será pelo clima? Pelas paisagens? Pela conquista do mundial? Não: é pelas touradas, pelas señoritas, pelo flamenco, é porque não precisa de ter estado num país para dele sentir saudade. O homem mais alto do mundo ensina em "King Of Spain" como se faz uma canção capaz de puxar um sorriso, daqueles miscigenados em que a joie de vivre se junta a uma terna melancolia. Mais: mostra ter a força necessária para alcançar o seu sonho. Acautela-te, Juan Carlos.

2

Beach House
"Norway"

Ao quarto ou quinto "ah" com que a canção inicia já nos apaixonámos. Pela reminiscência eighties, pela guitarra sonhadora, pelo ritmo. Porque pelos Beach House há muito que estamos apaixonados; eles que abandonaram agora o lado mais lo-fi e fizeram de Teen Dream uma coisa muito séria. Podia perfeitamente aqui estar "Zebra", "Used To Be" ou "Lover Of Mine" que o romance seria igual. Fiquemo-nos por "Norway", nós que gostamos de fiordes, de mulheres lindíssimas e de black metal.

3

Neil Young
"Love And War"

Não ter Neil Young num top de melhores canções num ano em que edita um disco seria crime. O disco é Le Noise, e "Love And War", uma maravilha acústica tocada com os dedos em sangue, prossegue essa toada; é um tema anti-guerra clássico, é uma auto-crítica velada (I sang in anger, hit another bad chord...), é poesia, é Young. Acima de tudo é uma confirmação (mais uma, mais uma...) de que velhos são os trapos e de que quem lhe pressagiou a morte não sabe do que fala.

4

B Fachada
"Memórias De Paco Forcado, Vol. 1"

Não é preciso explicar, apenas citar: Eu vou ser o puto Abrantes / Eu vou ser o Panda Bear / Entrar onde eu quiser / Entrar onde eu quiser. Chuva de elogios após chuva de elogios, B Fachada chega ao final do ano com dois (enormes) discos editados e outro na calha, concertos por todo o lado e uma aparição na gala da Causa Maior onde até João Baião se tornou fã. Senhores da Sonae, se estiverem a ler, a Popota tem de cantar uma versão disto no ano que vem.

5

M.I.A.
"Born Free"

O videoclip é uma tentativa aborrecidamente arty de tentar chocar os mais incautos, de criticar a sociedade capitalista e consumista, de chamar a atenção para o racismo ainda vigente - enfim, essas coisas todas que os RAtM faziam melhor. Porém, elogie-se "Born Free"; não só pega num sample da melhor canção de sempre dos gigantes Suicide, transformando-o por completo num cocktail molotov destinado a egípcios e anarquistas vários, é das poucas coisas interessantes que se retiram da meia-desilusão /\/\ /\ Y /\. Com o copyright de Gustavo Sampaio: não se lhe poderia exigir muito melhor.

6

Caribou
"Kaili"

Porque "Sun" vai figurar nas listas de meio mundo e há quem tenha a pretensão de ser diferente. Vê-lo arrancar com esta no Lux estampou de imediato um sorriso na cara e lançou o mote para o grande concerto do final de ano. E, vá lá, admita-se: aquele som sintetizado que se espalha ao longo da faixa é qualquer coisa, como uma pérola escondida entre a soberba. Caribou, diz-me tu, quantas malhas tens tu...

7

George FitzGerald
"The Let Down"

Eu, pobre, me confesso: salvo a excepção Burial, não estou por dentro daquilo a que coloquialmente se chama dubstep e poucas vezes consigo distingui-lo das suas ramificações, assim como não distingo o jungle do drum n´ bass. Mas há de quando em quando faixas que chamam a atenção de uma forma semelhante à história do amor à primeira vista. Assim é "The Let Down"; aquele início parece sacado de uma transição comercial na SportTV, mas depois desenrola-se e mostra um beat fantástico, samples de vozes carregadas de emoção e algo que ajuda a dançar q.b. para numa discoteca nos roçarmos sem parecer estranho na loira boazona de copo na mão.

8

The Drums
"I Need Fun In My Life"

Já se sabe: são uma cópia, não são originais, têm ar amaricado, são hipsters, e só são conhecidos porque o assobio da "Let's Go Surfing" é viciante ao cubo. Mas todas estas descrições são nada mais que preconceito. O homónimo álbum de estreia pode não ser aquilo que muitos procurem para se sentirem felizes, mas há lá um tema indispensável (porque o outro do assobio já tinha sido editado antes e só aqui se encontra para encher chouriço): "I Need Fun In My Life" é tão bonita e fenomenal na sua meninice pop que uma pessoa só se pode sentir impelida a perdoar todos os plágios.

9

The Black Keys
"Never Gonna Give You Up"

É sempre arriscado incluir uma versão como uma das canções do ano, mas, foda-se, são os Black Keys. E os Black Keys pegam neste tema soul dos finais de sessenta e, com uma qualquer química estranha, tornam-na ainda mais emotiva. Dedos mágicos, os de Auerbach e Carney. É verdade que em vez de uma versão podia perfeitamente ter-se escolhido qualquer uma das outras maravilhosas canções em que consiste Brothers, mas esta é uma lista pessoal, que, como todas, é falível.

10

Les Savy Fav
"Lips 'N Stuff"

O regresso dos Les Savy Fav aos discos era quiçá um dos mais aguardados de 2010. E valeu a pena? Com certeza. Root For Ruin é novo tratado pop hardcore para miúdos de dezasseis anos com pretensões de terem vinte e quatro, ou vice-versa. Daqui retira-se "Lips 'N Stuff": um riff enérgico o suficiente para nos levar a ficar por perto até explodir no coda final: Let's pretend we're innocent / We're just friends with benefits. O hino adolescente de 2010, que também é grande em formato acústico.


 

Pedro Rios

 

1

Kanye West ft. Rihanna, Kid Cudi, Elton John, Alicia Keys, et al
"All of the Lights"

Megalómano, gigante, com mais convidados do que manda a racionalidade económica (chamar Elton John para tocar piano numa canção em que o piano nem é assim tão importante é coisa que só Kanye, figura pop que se autocandidata a uma dimensão maior do que os tempos actuais permitem, se lembraria). "All of the Lights" é isto e é uma bomba: bateria picadinha, sopros sintetizados a disparar euforia, Rihanna a voar sobre tudo isto e Kanye a pousar palavras sobre o estrilho.

2

Ariel Pink's Haunted Graffiti
"Round and Round"

Símbolo máximo da condição de Ariel Pink de representante maior de uma geração de artistas pós-irónicos (recorro aqui à feliz expressão de Pedro Gomes sobre June), pós-noise e pós-pop, que fazem música documental (de memórias, impressões, construções), sorvedouro de referências. A história desta geração está por escrever e merece ser valorizada (Simon Reynolds aproximou-se disso escrevendo "leave chillwave alone"), mas é certo o lugar de Pink neste movimento que deita por terra separações inúteis entre bom e mau gosto, pop e cérebro, massas e nichos. "Round and Round", magnífico monumento, parece uma canção da era VH1 descoberta apenas em 2010, com todo o brilho e o gloss das canções pop perfeitas de Hall & Oates e companhia. Que isto venha de um rapaz que cresceu a ouvir Throbbing Gristle (e também pop) diz bem dos tempos excitantes em que vivemos - por mais que os cínicos digam o contrário.

3

Deerhunter
"Desire Lines"

Disco enorme, canções enormes, tudo incrível, mas, porra, topem esta, com aquelas guitarras apontadas ao céu, vozes ao fundo a levitar, Bradford Cox incrível, movido a torpor, a flutuar sobre tudo isto, tudo isto a inspirar aquele estado de deslumbramento que a escola indie dos bons tempos sabia fazer, ainda por cima com uma coda final que tem entrada directa no compêndio dos melhores crescendos-de-guitarras-que-não-vão-a-lado-algum (e graças a Deus por isso).

4

Deerhunter
"Helicopter"

Ó que caraças, mas como é que eles fazem canções assim? Esta maravilha também flutua, anestesiada quanto baste, mas debaixo de água. Há cordas a dissolverem-se em água, loops em cascata a embalarem-nos e Bradford Cox – vou repetir-me – a flutuar sobre tudo isto. Isto são os Deerhunter a fundirem-se com Atlas Sound - o mundo agradece.

5

Gala Drop
"Overcoat heat"

Nunca nos desiludiram, mas os Gala Drop de Overcoat Heat, sublime EP lançado no ano passado, são um caso aparte. Não há banda como esta no mundo, capaz de num disco ou num tema cruzar o transe krautrock, ritmos sacados a África e house cósmico - e tudo aquilo misturado fazer pleno sentido. "Overcoat Heat", a canção, é o magnus opum dos lisboetas: kraut circular, som de bateria filtrado por eco, sintetizadores em arabescos psych, domínio total. Dura seis minutos, mas devia durar muito mais.

6

Gala Drop
"Rauze"

Poupo-vos à mesma conversa. "Rauze" abre como uma canção dos Animal Collective: microacontecimentos em loop, camadas de felicidade, a mesma sensação de pré-euforia dos nova-iorquinos. Evolui depois para algo diferente, o que diz bem da plasticidade dos novos Gala Drop, que se poderia definir como música de dança de um quarto mundo, por inventar. Prova que os Gala Drop são uma incrível máquina de groove, facto a que não é estranho terem Afonso Simões na bateria.

7

Panda Bear
"You Can Count on Me"

É Noah Lennox a deixar a dependência do sampler, a lançar-se para um novo mundo (mas totalmente ligado ao anterior) e a sacar mais momentos de génio. "You Can Count on Me" é uma pequena balada (dedicada ao segundo filho, nascido em Junho de 2010?) "(Know you can count on me/I'll be so up for it/Know at least I'll try"), com uma beleza que, como dizia um comentador no YouTube, lembra a banda sonora de "Rei Leão". É por aí, mas tudo embrulhado numa produção dub. Panda Bear: único como sempre.

8

Hot Chip
"I feel better"

É obra lembrar "La isla bonita", uma canção algo atroz de Madonna, e safar-se com estilo. Os sintetizadores balofos a abrir e o autotune pós-808s & Heartbreak (impecavelmente usado para amplificar a carga emocional da canção) são todo um programa, mas o que vem a seguir, algures entre a pop dos anos 80, a house e o eurodance de carros de choque, fazem de "I feel better" uma canção incrível. Com estes ingredientes, a coisa podia ser um desastre. O facto de não ser mostra a grandeza dos Hot Chip de 2010, que felizmente deixaram a mania de poluir maravilhas pop com estranheza. Ficaram só com a pop e ficaram muito bem servidos.

9

Kanye West feat. RZA, Jay-Z, Pusha T, Swizz Beatz & Cyhi the Prynce
"So Appalled"

É o momento mais austero de My Beautiful Dark Twisted Fantasy, mas é um dos mais sublimes. Partindo de um sample dos Manfred Mann's Earth Band, originalmente perdido numa canção prog-pop de gosto duvidoso, "So Appalled" junta-lhe arranjos épicos mas sem armar ao pingarelho. Em cima, é um desfile de estrelas, destacando-se Jay-Z, Pusha T ("An arrogant drug deal of the legend I become / CNN said I'll be dead by twenty-one") e, claro, Kanye, com uma dica memorável ("Champagne wishes, thirty white bitches/I mean the shit is fuckin' ridiculous").

10

James Blake
"Limit to your love"

Isto transforma o original de Feist em canção vulgar. Blake reduz o original ao piano e à sua voz (felizmente sem autotune, como infelizmente se lembrou de fazer profusamente no novo álbum) e uma espantosa secção que repesca ao dubstep a chuva de graves. O mérito de "Limit to your love" está na capacidade de ir ao dubstep buscar apenas a câmara reflectora de ecos e ter o feliz descaramento de cruzar isso com uma canção ao piano, formalmente clássica.


 

Rafael Santos

 

1

Caribou
"Sun"

É irresistível desde os primeiros instantes. Contagiante quanto baste, tem sol, muito calor. São camadas de som que se vão sobrepondo entre a mais estrafega house, a pop mais luminosa e um repolego swingante persistente. A poesia escrita é inexistente, as letras não vão além de três para simplesmente dizer Sol, mas nem por isso se pode ignorar a verve melódica. A voz, essa, está num constante vai e vem por entre um delírio de sintetizadores que jamais permitem nuvens negras na contiguidade de um astro que brilha com imensa intensidade.

2

Cobblestone Jazz
"Fiesta"

Já antes se tinha mostrado num EP. Em 2010 apresentou-se formalmente no alinhamento de um disco que não entusiasmou como desejariamos. Mas é um momentos pilar de The Modern Deep Left Quartet e está lá algures pelo meio como estaca central que permite que a tenda não desabe. "Fiesta" é isso mesmo: festa. Festa sóbria que permite o colóquio entre coctails. Tem uns quantos ácidos a desfilarem por entre idiosincrassias techno e house, tudo ao natural e sem exageros. Para consumir de fato e gravata enquanto se projectam olhares sensuais para as mais encantadoras esposas dos "cornos".

3

Space Invadas feat. Jade Macrae
"Life"

Com um disco de originais intitulado Soul:Fi editado na Primavera de 2010, com uma distribuição oficial circunscrita à Austrália, a edição à escala global foi anunciada pela BBE Records para este mês de fevereiro. Antes, e de forma envergonhada, foi distribuído o EP Done It Again. Contendo 3 temas do alinhamento de Soul:Fi (e umas quantas remisturas),o registo serve de apresentação da dita sonoridade future soul do projecto. Todos os temas têm uma sonoridade distinta, é certo, mas na graça caiu este excepcional exemplo de cruzamento dos velhos ensinamentos da soul e do funk, que trás à memória, por exemplo, os Jackson 5, e as técnicas de manipulação e sobreposição dos samplers para uma honesta e sincopada homenagem à força anímica em dias conturbados.

4

DJ Shadow
"I've Been Trying"

Um regresso aos originais em 2010 para anunciar a sua vinda em álbum em 2011. Desaparecido desde o irregular The Outsider, Shadow começou por colocar dois originais no seu site em download gratuito (a modalidade de venda veio a seguir), um deles foi este encantador e sóbrio "I've Been Trying"; de tonalidade soul em descarado cruzamento folk-country-psicadélico, Josh Davis volta a montar - porque de muitos samplers inteligentemente sobrepostos se volta a tratar - uma grande canção carregada de saudáveis nostalgias.

5

Hindi Zahra
"Fascination"

Passou despercebido. Infelizmente. Handmade, disco de estreia da marroquina (mas radicada em França) Hindi Zahra, além de uma muito interessante ode ao amor e às contradições que o mesmo provoca, é também um intenso desfile de sensualidade folk, jazz, soul e pop no feminino. "Fascination" prova-o, não com impressionante originalidade mas com intrigante e fascinante convicção vocal na interpretação. Passou despercebido a alguns, mas não deve passar sem o mínimo de reconhecimento, restando esperança num futuro tão luminoso como a sua bela voz.

6

Dj Sprinkles
"Masturjakor "

"Masturjakor" é mais uma masturbação house de Terre Thaemlitz. Depois do excelente álbum Midtown 120 Blues de 2009, voltou a apresentar-se ao serviço para um acto de contrição da sonoridade deep com os velhos tiques jack. Explora sem redundâncias ou falsas nostalgias a vertente mais clássica do som de Chicago mas sempre com uma abordagem singular e genuína onde há espaço para discretos corais melodiosos ou ambientalismo rural que traz, por exemplo, o intemporal Chill Out dos KLF à memória. Os melhores orgasmos house em alta-definição continuam, actualmente, a passar pelo nome do nova-iorquino Sprinkles.

7

Martina Topley-Bird
"Lying"

É uma descoberta recente, confesso. E nem é propriamente um tema novo. Originalmente editado em 2003 no álbum debutante a solo, Quixotic, "Lying" ganhou nova forma recentemente. E que forma. Despido de artifícios, reduzido a uma simplicidade rítmica e melódica significativamente distinguível do original, esta nova versão, incluída no acolhedor Some Plae Simple, editado via Honest Jon's, é uma terna e sentida ode ao amor. A voz sobressai, ganhando nova vida. No fundo, esta recontextualização é uma caminha de veludo feita de novo, lavadinha, onde nos sentimos relaxados e apaixonados, definitivamente muito bem deitados.

8

Photonz
"Aquarian Ball"

Tem som claramente anos 90. E nenhum mal vem ao mundo. Breakbeat vigoroso, promiscuidade com o rock, ambiente trance e, mais que tudo, um espírito rave incapaz de deixar indiferente os noctívagos ávidos de loucura na pista de dança. "Aquarian Ball" é o que faz, e bem; promove loucura, hedonismo puro, na pista ou noutro qualquer local. Uma prova da vitalidade criativa dos nossos Photonz, mas também um bom exemplo de como velhos ideais que alimentaram as rave's ainda conseguem ser rentabilizados muito bem no presente. A Kaos iria amá-los.

9

LCD Soundsystem
"I Can Change"

São os LCD. Por aí deveria estar tudo dito. Grandes construtores de canções, são um dos nomes que marcam a década que há poucos dias acabou. E nem se sabe muito bem se ainda há alguma coisa nova a acrescentar à virtudes de James Murphy, no entanto "I Can Change" é o mais recente exemplo de um tema que marca pela mensagem. Pessoalmente marca-me pela nostalgia que provoca e pelo lembrete irónico da teimosia que a mudança provoca em todos nós, seja no amor ou noutro qualquer nível da vida. Mudar deveria ser fácil, tal como fazer sacrifícios, e uma simples promessa deveria chegar, o problema é que são várias as vezes em que preferimos quebrar que torcer. E quando tudo termina, resta o lamento.

10

Scuba
"Light Out"

Num disco amado por uns, indiferente para outros, não se pode negar umas quantas pérolas que flutuam no espaço irregular (no bom sentido) do dubstep e o dub techno. "Lights Out" termina a sessão de triangulação que Scuba procurou para um disco de novos parâmetros, tentando não confinar o dubstep a limites excessivamente tangíveis mas procurando, simultaneamente, manter o som longe da tendência pós-dubstep que ganha cada vez mais adeptos pela capacidade de mutação e adaptação a novas realidades no espectro pop. "Lights Out" é consistente, é escuro sem ser tenebroso, tem aquele ambiente enevoado de Aphex Twin e de Burial, mas tal como Martyn ou os Basic Channel tem ritmo competente para nos deixarmos balançar. Assim soam as madrugadas frias.


 

Simão Martins

 

1

Four Tet
"Love Cry"

Com There Is Love In You, e apesar das embaraçosas revelações do Wikileaks, sobretudo no plano diplomático, todos se abraçaram perante o engenho e técnica de sampling inquestionáveis de Kieren Hebden. É neste disco, marcado por uma electrónica multifacetada e laboratorial, que encontramos "Love Cry", uma das malhas românticas mais dançáveis de sempre, que Four Tet prolonga por mais de 9 minutos sem pedir autorização. Aliás, isto entra quase no domínio da intimidação, em que quem não bate o pé é ovo podre. Podendo, é bater.

2

The Black Keys
"Ten Cent Pistol"

Num disco tão bem preenchido com canções para todos os gostos, tendo sempre na mira os ensinamentos de Hendrix, é humildemente que "Ten Cent Pistol" se ergue em Brothers. Se fosse possível compilar o desespero e a fúria feminina, sem nunca esquecer o seu romantismo inato (que jamais poderemos contornar), esta seria a canção ideal para o fazer: a guitarra, lamechas, desenha um riff em oitavas para espelhar a emoção da alma ferida; a bateria, em timbalões saltitantes, ocupa-se do ritmo cardíaco da pobre mulher, que com o seu revólver agride quem a difamou. E assim se fazem canções do caralho.

3

LCD Soundsystem
"Home"

Último disco, últimas cartadas, a conversa do costume. Estratégias de marketing à parte, havia melhor maneira de concluir (hipoteticamente) uma carreira com uma canção como "Home"? A pergunta, que mais não é do que retórica, porque gostos são gostos, deixa-nos ainda assim espaço para asseverar que, ao longo da última década, os LCD Soundsystem tornaram-nos pessoas um bocadinho mais felizes. Como? Entrando-nos pelos ouvidos, pela casa adentro e pelas pernas, que teimaram em não deixar quietas, mas fazendo-o com a maior elegância. "Home", que repete a melodia de "Dance Yrself Clean", só bate a segunda pela saudade e melancolia que transporta, fazendo-nos suspirar por mais e mais disto. É pedir muito, Mr. Murphy?

4

The Walkmen
"Juveniles"

Fizeram-nos o favor. Nós retribuímos. Depois de garantirem casa cheia nos concertos em Portugal até ao fim dos seus dias, os Walkmen recebem assim o prémio de uma das canções de 2010 para um dos escribas do Bodyspace. Não é óptimo? Depois falamos. Certo é que Lisbon, disco grande desse ainda familiar ano de 2010, tem como primeira canção "Juveniles", mais uma dessas maravilhosas epifanias rock a que os norte-americanos nos têm habituado. A guitarra, embora não como mandaria Carlos Paredes, despeja baldes de reverb e sobre ela impõe-se a voz de Hamilton Leithauser, que nos ajuda a nunca esquecer o bem que Dylan fez ao mundo. Agora, senhoras e senhores, é a vez dos The Walkmen, donos e senhores da nossa capital.

5

Arcade Fire
"Sprawl II"

Falar dos Arcade Fire tem que se lhe diga. São muitos, são uns tipos porreiros e são canadianos, o que por si só não quer dizer nada. O que lhes vale são as músicas, autênticos hinos da era indie rock em que tudo soa igual e nada, tentem de mil e uma formas, soará a Arcade Fire. Mas, em 2010, estes provaram do próprio veneno e souberam, por uma vez, soar a outros. E soar pior. Só que esta malta integra o SMIC – Síndrome de Musicalidade Inacreditável e Compulsiva – e demonstraram-no em "Sprawl II". Régine Chassagne, comummente associada à destruição de vidraças na vizinhança, é personagem de relevo nesta história e, por uma vez, faz da mesma um momento inesquecível: "Sprawl II" tem tudo para fazer do pior cliché um episódio feliz.

6

Vampire Weekend
"Diplomat's Son"

Paulo Cecílio, escriba deste sítio, disse uma vez que "o grupo de Ezra Koenig já fez o suficiente para ser visto como algo de único". E não se enganou. De facto, depois de uma primeira experiência africanizada no debutante Vampire Weekend, os norte-americanos reinventaram-se e, em Contra, revelaram a nova faceta do beto fixe. E, como se não bastasse, o apogeu dessa mudança é "Diplomat's Son". É que, para além de se basear num sample de M.I.A e de falar sobre o génio que foi Joe Strummer, permite-nos dançar sentados, baloiçando a cabeça para um lado e as ancas para o outro, resultando igualmente para a frente e para trás. Experimentem!

7

Gorillaz
"Stylo"

Ok, já ninguém pode com os Gorillaz e com os mil e um projectos e colaborações que parecem infindáveis. Mal tinham acabado, já aí estava mais um disco feito no iPad para admirar Albarn e os seus devaneios. Mas, foda-se, quem é que se farta duma faixa em que, sob a voz gritante de Bobby Womack, surge Bruce Willis, qual mauzão sádico, em perseguição à bonecada animada? Isto para não falar de todo o stylo da malha, baixo sequenciado, sintetizadores a pairar na atmosfera nebulosa deste lado mais electrónico da macacada – e, diga-se de passagem, bastante apelativo. No fim da estória, os bonecos safam-se e o Bruce, de pistola na mão, diante da sua carrinha de caixa aberta, exibe um sorriso maroto. Impagável.

8

Shit Robot
"Tuff Enuff"

Fazer James Murphy gostar de electrónica é obra. Pelo menos é o que contam de Marcus Lambkin, o humano que se esconde nos bastidores de Shit Robot, o robô merdoso que melhor electro dance produziu em 2010, sob o selo da DFA. "Tuff Enuff" é a malha de abertura de From The Cradle To The Rave, disco de estreia do irlandês Lambkin. Em suma, receita fácil: sintetizador a ocupar-se do tema nos graves, logo acompanhado de uma drum machine vintage (provavelmente Roland) e cordas sintetizadas para alegrar o refrão. Nada mau para um robô merdoso.

9

Discodeine (feat. Jarvis Cocker)
"Synchronize"

Parece uma parelha esquisita, mas já Anthony Hegarty nos tinha alertado para tal com os Hercules & Love Affair, há coisa de dois anos. Certo é que Jarvis Cocker, senhor de polpa e circunstância, encaixa perfeitamente nos desejos e intenções dos Discodeine, mesmo que a voz não esteja sempre na bolacha – e é isso que gostamos nele. O resultado é uma sincronização sem precedentes, redundante, obviamente, em que o disco impera e pede para não ter fim. Poucas foram as noites em que Synchronize não fez falta quando não aparecia. Uma colaboração deste calibre, capaz de nos fazer suspirar, só pode ser louvada.

10

Cee Lo Green
"Fuck You"

Não é para todos. Sim, já tantos tentaram, de Joe Berardo a Lily Allen, que até teve uma singela aparição nesse sentido. Mas vamos cair na realidade. Se algum dia houve quem soubesse, com tanto nível e tanto funk, com tanta pinta, tanta cor e alegria, ironia e mestria, mandar alguém para o caralho, esse alguém foi Cee Lo Green. E isto aplica-se a todos. Até ao próprio Cee Lo Green, que fez uma versão soft para o Ídolos, intitulada "Forget You". Fuck you, Cee Lo Green. E espero que gostem agora do groove e do swing: fu-fuck yoooou. Sabe bem, não sabe? Só Cee Lo Green para uma destas!


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