Focar Jandek é também negá-lo. Contrariar a vontade de um criador que optou pela quase total reclusão, evitando todo o tipo de contacto com os média e os fãs, equivale a uma intrusão desnecessária ao entendimento da música de Jandek. Referir nomes próprios, datas e moradas (excepto a de sempre: Corwood Industries / P.O. Box 15375 / Houston, TX 77220) torna-se um exercício acessório, quando a vasta discografia de Jandek comporta na música todas as respostas essenciais.
Ao longo de dezenas de álbuns, editados pela Coorwood Industries desde 1978 com uma regularidade aproximadamente bianual, o nome Jandek (nunca oficialmente associado a qualquer pessoa) estruturou o seu próprio universo paralelo, geralmente povoado por folk e blues incaracteristicamente crus, às vezes escutados em registo acústico e outras em eléctrico. Funcionando como universo hermético, o “à parte” Jandek comporta também espaço para os seus próprios ciclos (são frequentes as referências a rios e rochas), numerologia e símbolos (ocasionalmente, as letras obscuras referem obsessivamente objectos como “charutos”, por exemplo). Tudo o resto que importa saber sobre Jandek já foi referido pelo André Gomes no excelente artigo dedicado ao documentário Jandek on Corwood, pelo que a repetição é desnecessária.
Fosse necessário um exemplo para distinguir Jandek dos demais, e poder-se-ia referir que o labírintico biopic Não Estou Aí, centrado em Bob Dylan, assumiria contornos infinitamente mais estranhos caso procurasse alegorizar a vida do Representante de Corwood. Os aficionados e curiosos contam, porém, com uma raríssima oportunidade de presenciar Jandek ao vivo, numa actuação única a acontecer na Fundação Serralves, no Porto, no próximo dia 10 de Janeiro. Depois de um quarto de século sem nunca ter tocado em público, Jandek estreou-se em Glasgow, na Escócia, a 17 de Outubro de 2004, sem grande alarido prévio. Desde aí, tem surpreendido a cada prestação inédita, por evitar a repetição dos temas registados em disco e preferir a rotatividade dos músicos que o acompanham. Na antecipação da noite especial que se espera em Serralves, o Bodyspace decidiu celebrar o nome de Jandek com testemunhos e opiniões de alguns entusiastas e ex-colaboradores seus (caso de C. Spencer Yeh, Emil Amos e Liz Harris). O homem que nunca foi andará por perto.
Adam Gnade
Existe muita coisa que me faz perder a fé. Muita música de merda que não se parece sequer com música. Tubarões oportunistas e consumidores diabólicos. Muita coisa que me leva a querer desistir de tudo e optar por ser um agricultor no Kansas. Mas existem pessoas que me repõem no ponto inicial da vontade criativa e que me fazem sentir novamente como um ser humano. Arte imperfeita e humana que se esfrega na tua cara, sem rodeios, apenas com verdade e um sentido intransigente de realidade. Jandek toca tal como as coisas são. O homem desdobra-se em blues de coveiro e pura compassividade. É a personificação da puta da música folk. Digo-o enquanto estou a viver na Holanda com os meus bons amigos Jamey Bainer e Seineke, a milhares de quilómetros da minha América, aquela que fez de mim quem sou. Escutar Jandek absorve-me de novo e vejo tudo a desabrochar diante de mim: as torres das fábricas e os fios de electricidade, os restaurantes fechados e uma vasta pais gem desertificada e queimada. Jandek é a América e o Jandek é a minha América.
C. Spencer Yeh (Burning Star Core)
Pessoalmente, uma perspectiva fulcral do espírito de Jandek ocorreu um dia após a nossa actuação oficial. O Adam Fleischer, o incansável organizador de todo o fim-de-semana, marcou uma sessão de estúdio para o serão desse dia, contando com todos os envolvidos, incluindo, claro, o próprio Representante de Corwood. Gravámos algumas jams optando pelos métodos habituais, mas a certa altura decidimos que podia ser porreiro trocar de instrumentos entre nós. Só naquela… E porque não? Perguntei ao Representante o que queria tocar, e, com um sorriso entusiasmado, apontou para a bateria. Depois disso, já estava a arrancar um fuzz completamente fodido ao baixo, entretanto começou a malhar no piano, sempre sem parar de sorrir debaixo do chapéu negro que nunca abandonou a sua cabeça. Eu tenho a certeza de que chegaria ao meu violino se o tempo e energia não se tivessem esgotado. Se estas sessões algum dia chegarem aos ouvidos públicos, sem que seja especificado quem tocou cada instrumento (incluindo as vozes e algumas afinações de guitarra), será que se dariam ao trabalho de saber quem fez o quê ou catalogariam tudo com o nome de Jandek? E caso se preocupassem em estabelecer essa correspondência, não teriam também de voltar a considerar os primeiros discos de Jandek? Será que a guitarra estava a viver um dia mau naquele disco em particular ou a culpa seria da habilidade do carteiro, que foi obrigado a interromper a sua rota durante uma hora para contribuir?
Dennis Driscoll
Comecei a ouvir falar da Corwood Industries no fim dos anos 90 quando me mudei para Olympia, Washington. Muito dos meus amigos, como o Aerick Duckhugger, Arrington de Dionyso, Jenny Jenkins, Calvin Johnson e Aaron Kruse, eram aficionados dos discos de Jandek. Em 2006 ou perto disso, fiquei surpreendido ao encontrar uns seis discos de Jandek em vinil na “pilha de esquecidos” da K.M.U.N. 91.9 FM em Astoria, Oregon. Comprei-os por 25 cêntimos cada e agora tenho esta quantidade de álbuns de Jandek em vinil que a certa altura tinham sido enviados para a Community Radio Station de Astoria, Oregon. Uau! Eu adoro a música, mas sempre me recordarei dele como uma pessoa secretista e misteriosa.
Emil Amos (Grails / Holy Sons)
Ouvi falar de Jandek através da Aquarius Records e senti-me de imediato embaraçado ao dar conta de que tinha influenciado muitos dos artistas que me influenciaram. Foi a primeira vez que ouvi alguém a ser bem sucedido no uso do improviso como forma de expandir a música folk e redescobrir o seu propósito original.
Acabei por sentir que Jandek perseguia algo que eu sempre tentara alcançar, embora tenha acabado por desistir com um certo sentimento de fracasso pessoal. Ele levou essa vocação até bem longe, demonstrando sempre muita coragem. A sua técnica incide em confiar na voz e no corpo para veicular uma mensagem sem deixar que essa seja tiranicamente esmagada pelos moldes da folk explorada no passado. A honestidade e o instinto são provavelmente os aspectos mais subestimados quando se pensa no que torna a música potente e significante.
Tocar com ele foi como conviver com uma parte da família que desconhecia até aí. Basta reparares nos olhos e feições para adquirires um sentido de completo conforto e familiaridade. Foi certamente a mais excitante das colaborações (incluindo o Sam Coomes) de que fiz parte até esse ponto, na medida em que o elemento do improviso nos obrigou a encarar a situação com um nível de confiança que se compara somente ao tipo de confiança que sentes entre família.
Lawrence English
O que mais me impressiona é a profundidade da sua obra, nem tanto de um modo estritamente técnico ou concentrado. É como se Jandek fosse um fluxo: em qualquer altura da sua discografia, existe uma energia e movimento que, quando considerados como um todo, podem ser opressivos, tal como absolutamente absorventes. São escassos os músicos que se podem gabar de tão inesgotável quantidade de inspiração.
Liz Harris (Grouper)
Eu cantei com Jandek em Portland na primeira vez. O Ethan Swan da Jackpot Records, que muito ajudou a planear tudo, ligou-me e deixou uma mensagem no meu gravador em que perguntava: Queres cantar com Jandek? Liga-me.. Eu liguei-lhe e disse que sim. Isto sucedeu-se uma semana antes do concerto. Eu acho que Jandek tinha pedido duas cantoras secundárias muito parecidas entre si. Embora eu não saiba se foram essas as palavras exactas… O Ethan já tinha dirigido o mesmo pedido a uma amiga dele, a adorável Jessica Dennison, que tinha um lindo cabelo castanho comprido e uma franja longuíssima, e, nessa altura, eu tinha um penteado exactamente igual, com cabelo castanho comprido e franja gigante… O Ethan conhecia bem a minha música e sabia que eu também conhecia a música de Jandek, mas, no fundo e sendo isso muito engraçado, creio que fui escolhida por causa do meu penteado.
O concerto foi óptimo. Mais tarde escutei a gravação e devo dizer que me pareceu bastante diferente da ideia que tinha do som dessa noite, talvez porque gravaram tudo individualmente em vez de captar tudo com um microfone apenas. A gravação soa estranha e ranhosa.
Jandek contactou-nos através de promotores em Seattle referindo que desejava que actuássemos de novo em conjunto. Desta vez foi muito medonho, num pequeno quarto e não numa grande sala, como tinha acontecido no primeiro concerto em Portland. Nesta segunda ocasião, em vez de cantar apenas numa canção, pediu que cantássemos em muitas mais, e cada uma de nós tinha uma música para cantar sozinha. Escreveu uma música para mim baseada num cd-r 3” que lhe enviei chamado He Knows. A letra era referente ao vento que soprava numa aldeia abandonada. Ele também escreveu uma canção muito espiritual que terá sido das coisas mais bonitas a que tive oportunidade de dar voz. O público estava muito silencioso, e o nosso registo foi maioritariamente moderado e melancólico. O concerto pareceu-me espectacular, não necessariamente porque a música era fantástica, mas porque senti presente a noção de banda. Todos nos conhecíamos do concerto anterior, e tínhamos convivido nos bastidores a beber cerveja e a falar de música e de experiências de vida. Jandek foi muito amigável e trouxe-nos cerveja e aperitivos… Nunca tinha estado numa banda com mais de uma ou duas pessoas, e raramente tinha sentido isso como uma experiência positiva, mas recordo-me bem de como me senti ao voltar de carro a Seattle nessa noite… A alegria de tocar música com um grupo de pessoas, enquanto aprecias a facilidade nisso e nos laços desenvolvidos. A alegria que surge no aproveitamento dessa boa “moca” que apanhas quando tocas música com alguém com que te apetece realmente estar, um pouco por força de um instinto teu. E tudo isto com alguma dose de melancolia, porque eu sabia que nos restava apenas mais aquela noite e que depois tudo estaria acabado… Uma semana depois, recebi uma carta com um cheque e um elogio a uma das músicas que cantei. Ainda tenho esse cheque na minha gaveta…
Rita Vozone (ex-CAVEIRA / editora assistente do livro Old Rare New: The Independent record shop)
O melhor do Jandek, para mim, é o You Walk Alone de 1988. Quando revelei não ter muita paciência ou interesse para o fenómeno Jandek (isto foi na altura em que ele, segundo reza a lenda, reapareceu em público num festival pela mão do David Tibet), o amigo que me mostrou este disco prometeu-me que era a única manifestação de um Jandek contente. Não voltei a ouvir muito do resto mais do que duas ou três vezes, talvez porque costumo sempre ver copos meio-cheios em vez de
meio-vazios, o que explica porque é que prefiro texanos bem dispostos a texanos neuras. Encalhei alegremente neste disco, para o qual ainda hoje aponto quando alguém se lembra de me perguntar o que é que me influenciou enquanto guitarrista no camp CAVEIRA (a haver uma fórmula, seria juntar a “Lavender”, chinesice de happy blues instrumental que inaugura o You Walk Alone, com o riff inicial da cover do “Little Wing” pelos Derek & the Dominoes).
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