Vitorino Salomé combina há décadas as suas raízes alentejanas com uma vivência mais urbana. O que se reflecte na música que faz e no seu olhar, rasgado a partir duma qualquer janela aberta para o exterior.
O que o motivou a associar-se à manifestação de 12 de Março?
Tão-só porque gosto de me manifestar. Não é nada complicado. Quando acho que as manifestações têm razão de ser, e eu estou habituado a elas, manifesto-me desde pequenino. Tudo o que é contra-poder, eu alinho.
Considera, então, que desta vez havia motivos para se manifestar?
Absolutamente.
Que papel considera que a música desempenha nas transformações sociais e políticas?
É um papel fundamental nos povos mediterrâneos, no Sul. No Norte só me lembro de cancioneiros revolucionários na Irlanda. Todos os países mediterrânicos têm cancioneiros que acompanham as grandes revoltas. Estou-me a lembrar da Comuna de Paris, que tem um cancioneiro fabuloso, da Guerra Civil de Espanha. Ainda antes, aqui em Portugal, o cancioneiro da República, que é extraordinário e ninguém o conhece, que é uma coisa que me irrita muito. É radical, com textos fabulosos, anarco-sindicalistas, anarco-republicanos. Depois, há todo o cancioneiro do 25 de Abril, os partigiani italianos contra os alemães, os gregos. É um fenómeno muito mediterrânico. E, por exemplo, a música do Verdi serviu para os italianos se unirem e revoltarem contra os austríacos quando estes ocupavam o Norte da Europa. Toda a música intervém socialmente. Até a que serve para adormecer os povos e lhes dar a ilusão que vivem bem é tão eficiente como essa. Como a do Tony Carreira, que diz que está tudo bem e que tudo se resolve com amor e com paz, o que é mentira. Nada se resolve com paz; pode resolver-se com amor, mas quanto baste.
Pensa que teve algum sentido especial ver músicos de diversas gerações (Fernando Tordo; Blasted Mechanism; Kumpania Algazarra...) unidos numa mesma manifestação?
Teve. Eu também aprendi com os mais velhos. O Zeca (Afonso) ensinou-me a estar, ensinou-me truques de intervenção, agitação e propaganda. A gente delega o conhecimento que tem. E depois é um prazer ver outra vez os miúdos que, não só aparentemente, estavam inactivos, adormecidos – tudo lhes tinha sido fácil e, de repente, deparam-se com as dificuldades -, organizarem-se para lutarem contra elas. Foi uma manifestação fabulosa. Fez-me lembrar as do tempo do 25 de Abril, que eram desorganizadamente organizadas, não eram convocadas por partidos, eram convocados por vontades. Foi muito interessante.
Teve conhecimento do que o músico Ikonoklasta fez em Angola, convocando durante um concerto uma manifestação contra o regime de Eduardo dos Santos, tendo sido detido nessa mesma manifestação? Qual a sua opinião sobre esses factos?
Tive, sim. Mas ali as coisas são muito difíceis, como o poder é muito autocrático, muito centrado no Presidente da República. Foi extraordinário, arriscou o pescoço, que aquilo ainda é muito agreste. Fiquei admirador desse músico, embora não saiba exactamente o sentido que ele tinha. Eu sou da opinião que os músicos, os artistas, devem ser sempre de esquerda. Quando não são, eu desconfio… até da qualidade deles.
Qual é a sua opinião sobre o facto de cidadãos de vários países, não só na Europa como em África, Médio Oriente, etc, estarem a vir para a rua gritar contra os respectivos regimes políticos? E o que pensa de algumas dessas manifestações estarem a ser inspiradas ou convocadas por músicos?
De repente, quem é informado e tem acesso aos grandes meios de comunicação viu que tem essa força na mão e está a aproveitá-la. A internet é um instrumento muito perigoso na mão dos povos. Mas os poderes de todo o mundo vão encarregar-se de anular o acesso livre à internet, mais ano menos ano.