Luaty Beirão é mais conhecido por Ikonoklasta, ou Brigadeiro Mata Frakuxz. Integra, nesta condição, Batida e Conjunto Ngonguenha, entre outros projectos. No passado dia 7 de Março foi detido numa manifestação contra o regime angolano, à qual apelara durante um concerto dias antes.
Que papel consideras que a música desempenha nas transformações sociais e políticas?
Eu acredito que a música joga um papel crucial na nossa formação e evolução como seres humanos, tanto no que toca a percepções e opiniões do mundo que nos rodeia quanto a ideologias políticas, comportamentos sociais e tudo o que tenha a ver com a regulação de temperamento do indivíduo perante os desafios que enfrenta no seu dia-a-dia. A música molda-nos, faz-nos viajar, aprender, experimentar emoções, reflectir, reagir, oscilar de humores, enfim, poderia resumir com uma frase de uma das minhas primeiras músicas à solo: "Música, faz parte da constituição de um ser humano". Como ela participa nas transformações sociais e políticas? Depende de como elas são mais ou menos abrangentes e o grupo de pessoas que está ou não exposto à ela. Normalmente a música com conteúdo lírico, de intervenção ou crítica social, é sempre uma música de nichos e os nichos levam o seu tempo a tornarem-se importantes o suficiente até que se possa medir o impacto que teve ou deixou de ter. Acho que, por defeito, a música com carga política é feita mais depois de factos consumados, na hora de celebração das conquistas, do que usada como real ferramenta de activismo político com influência directa no desenrolar dos acontecimentos de um país. Há excepções como o caso da grande parte dos intelectuais da música brasileira que tiveram de optar pelo exílio durante a ditadura militar porque a provocavam com suas músicas, mas isso é a excepção à regra, pelo menos em países onde os regimes sejam opressores e a censura seja um facto inegável. Nos países onde a democracia já reina, a música de intervenção é recebida com mais cinismo e ironia, como fazendo parte de um complexo mosaico cultural e perfeitamente tolerável. A maior parte das pessoas não se revê em mensagens revolucionárias, pois não sentem haver verdadeiramente necessidade de revolução. Num país como Angola, a música de intervenção tem uma influência incontornável na juventude que hoje. Depois de quase 20 anos, começamos a sentir os efeitos. Os jovens que cresceram insatisfeitos com a situação política no país e que encontravam no hip hop consciente a certeza de que afinal não estariam malucos e sozinhos, estão hoje a ocupar cargos dentro das estruturas de poder e estão a começar a ser actores de uma mudança de mentalidade generalizada. No outro dia quando estava a ser detido, um jovem polícia de trânsito sentou-se ao meu lado, recitou algumas rimas minhas muito antigas e revelou ser hoje um reflexo do que as músicas desse género musical lhe semearam no cérebro (ele próprio também era rapper). Acho que essa é a força da música, semear ideias em cérebros receptivos de onde brotarão mentalidades novas para reciclar as velhas, na esperança que essa mudança seja generalizada, quando os nichos se tornem de facto nas massas.
Tiveste conhecimento da manifestação de dia 12 de Março em Lisboa? Qual é a tua opinião sobre a mesma e o seu eventual impacto?
Tive. Fiquei contente porque tenho impressão do jovem português particularmente apático em relação às outras juventudes europeias, que com muita frequência usam as marchas e manifestações para exprimir a sua cólera e repúdio pelas políticas dos seus decisores eleitos. A minha opinião sobre as manifestações é que elas são uma ferramenta poderosa na luta de poderes, massas governadas vs governantes decisores. Se ela for usada com convicção e determinação suficientes, as exigências populares acabam sempre por dar os frutos saborosos da vitória. Quando estava em França houve um movimento de estudantes que bloqueou as escolas e universidades durante mais de um mês, chegando mesmo a comprometer o ano lectivo, mas no final o movimento triunfou sobre mais uma modalidade de contrato precário que o governo queria fazer passar. Qual será o impacto da manif da "geração à rasca?". Depende. Haverá continuidade ou foi um acto isolado fomentado por um fervor inédito que movimentou os milhares de pessoas que se sentem com a corda ao pescoço? O que quererão realmente os manifestantes e será que eles percebem as possíveis implicações do que exigem? Eleições antecipadas? Mas acham que o governo seguinte saberá satisfazer toda a nação com as medidas que irá tomar? Eles irão herdar os buracos orçamentais que derivam de uma crise à qual um país como Portugal não tem muitas maneiras de se evadir. Ainda para mais, hoje em dia com essa história de UE, as ferramentas económicas que um Estado soberano tinha a seu dispor são muito mais limitadas e as obrigações são praticamente escravizantes. Se a tuga não conseguir baixar os índices de endividamento público rapidamente, correm riscos de sofrer sanções económicas. O kumbú dessas sanções depois é aplicado a apoiar programas de fomento de economias europeias mais atrasadas ou em risco de colapso, ou a subvencionar as agriculturas mais fortes da união. Eu acho que as medidas que o vosso governo tomou recentemente são altamente impopulares e, por isso mesmo, um grande pesadelo para eles que irão perder credibilidade ao pé dos seus eleitores e, provavelmente, as eleições, julgando pelos níveis de paciência que parecem ter atingido a luz vermelha da reserva, ao ponto de trazer os portugueses à rua tão massivamente. Por isso eu acho que a questão a colocar aí não é que consequências terá a manif, mas sim que consequências os manifestantes querem que ela tenha e até onde estão dispostos a ir para que elas se materializem, se o facto de se terem juntado tantos terá criado um bichinho político em cada uma daquelas pessoas, se elas se deram conta da força que o povo tem quando se junta em torno da mesma causa, se se irão criar grupos de discussão tão ausentes nessa apática classe estudantil. Essas são as verdadeiras questões a colocar, porque uma manifestação por si só, isolada, não creio que vá fazer os políticos, já abençoados pela UE, mudar de ideias quanto ao seu projecto de contenção e retenção.
O que que achaste de ver músicos de diversas gerações (Vitorino; Fernando Tordo; Blasted Mechanism; Kumpania Algazarra...) unidos numa mesma manifestação?
Acho sempre bonito, ver que as ideias de um mundo mais equilibrado, mais justo e mais equitativo são transversais às gerações, cores, credos e bandeiras políticas. Só espero não vir a saber mais tarde que algum deles foi pago para lá estar, porque isso mata a fé e a motivação de qualquer santo e os artistas são especialmente movimentadores de massas, por isso os mercenários de utopias são a espécie mais perigosa que há para a credibilidade de um movimento.
Qual é a tua opinião sobre o facto de cidadãos de vários países, não só na Europa como em África, Médio Oriente, etc, estarem a vir para a rua gritar contra os respectivos regimes políticos? E o que pensas de algumas dessas manifestações estarem a ser inspiradas ou convocadas por músicos?
Acho que já estava na hora. Convocadas por músicos acho que é ir um pouco longe demais, inspiradas talvez, mas difícil dizer até que ponto. De qualquer maneira, o Marx cagou uma sentença para o capitalismo que eu acho que é extensível às ditaduras indesejadas (não creio que sejam todas GENERALIZADAMENTE indesejadas, em Cuba por exemplo, acho que a população está bastante dividida) mediante este processo de globalização que se traduz pelo acesso às tecnologias e a informação por parte de quem antes tinha de se conformar com os mídia estatais onde a informação era triada e transformada para um consumo que não estimulasse ideias: "o capitalismo carrega na sua própria génese, a semente da sua auto-destruição". Estava na hora. A América Latina acordou nos anos 80, agora é a vez de África, esses déspotas todos vão ser escorraçados do poder que julgam pertencer-lhes.