Este jurista especializado na área do Direito do Ambiente é sobretudo conhecido como vocalista dos Mão Morta, banda que sempre fez questão de reflectir sobre a realidade, por mais incómoda que ela seja.
Que papel consideras que a música desempenha nas transformações sociais e políticas?
A música certa na ocasião apropriada é sempre passível de constituir uma boa banda sonora, e isto em todos os momentos da vida, privados ou colectivos. Pode, enquanto tal e numa qualquer contestação ou transformação social e política, ser factor de união e de referência, veículo catalizador de anseios e aspirações. Na melhor das hipótese, consegue reflectir, ao integrá-lo e exprimi-lo, um mal-estar geral dissimulado ou um desejo comunitário latente e, nesse caso, quanto melhor o integrar e exprimir melhor funciona enquanto bandeira da sua consciencialização e mais apta se torna a federar vontades atomizadas. Na pior das hipóteses, consegue transfigurar-se numa palavra de ordem – se é que ainda podemos falar de música quando isso acontece! Mas, seja como for, é sempre ornamental em relação às transformações sociais. Porque, por si só, a música não gera movimentos colectivos de contestação política nem provoca transformações sociais.
Qual é a tua opinião sobre a manifestação de 12 de Março em Portugal e o seu impacto?
As manifestações de 12 de Março foram grandiosas, como há muito não existiam, e significativas enquanto termómetro do descontentamento social que é patente na sociedade portuguesa. Mas para além da objectivação desse facto, do impacte mediático que isso causa e do aproveitamento que do mesmo tenderão a fazer as forças partidárias no seu combate político pelo poder, não há qualquer outra consequência. As manifestações apresentaram um vasto denominador comum de desagrado e insatisfação, mas não exprimiram qualquer programa de acção, minimalista que fosse, qualquer vontade para além da mera amostragem do descontentamento. E quando assim é o impacte acaba por ser apenas virtual.
O que achaste ao ver músicos de diversas gerações (Vitorino; Fernando Tordo; Blasted Mechanism; Kumpania Algazarra...) unidos numa mesma manifestação?
Não achei nada. As manifestações tiveram um cariz transversal a toda a sociedade portuguesa, integrando várias gerações de desempregados, de precários, de professores, de arquitectos, de empregados do comércio, de economistas, de engenheiros, de actores – porque não de músicos?
Tiveste conhecimento do que o músico Ikonoklasta fez em Angola, convocando durante um concerto uma manifestação contra o regime de Eduardo dos Santos, tendo sido detido nessa mesma manifestação? Qual a tua opinião sobre esses factos?
Um músico é, antes de mais, um cidadão. O facto de ser músico, de ser uma personalidade pública, pode proporcionar ao cidadão uma visibilidade que, de outro modo, não teria – o que responsabiliza ainda mais o cidadão. Num regime como o angolano, que reprime as mais elementares manifestações de cidadania, como o simples direito de expressão ou de opinião, assumir a responsabilidade de ser cidadão é um acto de coragem. Política e física. E é um acto de coragem porque tem obviamente consequências, a primeira das quais é a de canalizar sobre si a repressão do regime. A mesma que se abate sobre muitos outros cidadãos angolanos, que não são músicos.
Qual é a tua opinião sobre o facto de cidadãos de vários países, não só na Europa como em África, Médio Oriente, etc, estarem a vir para a rua gritar contra os respectivos regimes políticos? E o que pensas de algumas dessas manifestações estarem a ser inspiradas ou convocadas por músicos?
A contestação pública, pelos mais diversos motivos, circunscrita ou generalizada, é uma constante das sociedades ocidentais sob regime democrático. O dado novo é que essa contestação ocorra em sociedades oligárquicas e ditatoriais que, desde o fim dos impérios coloniais, sempre desfrutaram do apoio do Ocidente, como garante do equilíbrio geo-estratégico regional. E, sobretudo, que essas contestações tenham sido sucessivamente vitoriosas, quanto às suas pretensões mais imediatas, nos diversos países onde têm ocorrido, com o Ocidente a apressar-se nos apoios às mesmas, apesar do passado recente, como forma de garantir a manutenção dos eternos equilíbrios regionais. Mas, passando por cima da hipocrisia dos Governos ocidentais, europeus ou americanos, eu só posso regozijar-me com as mudanças de regime surgidas no Norte de África – e com as outras que estão em vias de acontecer, tanto no Magrebe como no Médio Oriente – e com a liberdade conquistada por tunisinos e egípcios. E só espero que a seguir à liberdade venha uma redistribuição da riqueza que atenue a pobreza desses povos, coibindo o fundamentalismo islâmico de por aí alastrar e impor uma nova ditadura. Quanto à existência ou não de músicos nesses movimentos populares de contestação aos regimes ditatoriais, não faço a menor ideia – mas sendo os músicos pessoas como outras quaisquer, admirado ficaria se não houvesse músicos mais ou menos activos por entre os contestatários.