Lhasa de Sela
Teatro Académico Gil Vicente, Coimbra
08 Jul 2004
Lhasa de Sela - mesmo que pouca gente o tenha apercebido antes desta mini-digressão pelo país - é admiravelmente grande em Portugal. Prova disso é, entre outros factores, a quantidade de gente – incrivelmente sedenta - que rumou ao TAGV, na noite de quinta-feira, em busca de intensos momentos de aconchego e de confidência.

Mesmo no final da actuação, a mulher que, há sete anos, com o álbum La Llorona, acordou e alcançou o mundo que sempre desdenhara a música mexicana, cantava “Soon This Space Will Be Too Small”, cuja letra fora inspirada numa teoria do seu pai sobre o nascimento e a morte do Homem. A dada altura, apercebíamo-nos que estas palavras ganhavam um outro sentido: o espaço parece, hoje, bastante pequeno para acolher a voz e as composições de Lhasa e dos “seus” músicos.

Para trás, ficavam cerca de duas horas de uma viagem por uma estrada viva que, segundo Lhasa, não deve perecer – um carreiro de lágrimas e charme, em palavras intimamente partilhadas em registo multilíngue (castelhano, francês, tchetcheno, inglês e português), de música delicada – enfrascada em tradição e modernidade - e de belos silêncios.

“Con Toda A Palabra” abriu, timidamente, o espectáculo. Lhasa ainda não se sente completamente confortável. Apalpa terreno, no escuro do palco. Ainda só lhe ouvimos a voz. O seu rosto esconde-se nas trevas. Eis que, de repente, surge uma luz. Nesse instante, Lhasa perde o receio e entra, num pedestal, na mente de quem a ouve e sente, através do belíssimo “La Marée Haute”. De voz rouca e ainda trémula, a mulher nómada que está de passagem por Portugal enche-se de coragem e aborda a audiência. Tem uma cábula para não se enganar, porque a tarefa é ambiciosa: tentar comunicar na língua-mãe do seu público. Na introdução de “La Frontera”, fala-nos de um vento que empurra, de nuvens que por vezes travam grandes batalhas e que, outras vezes, dançam ou simplesmente não fazem nada. O México instala-se, por momentos, num TAGV cada vez mais quente. As luzes – entre azuis e vermelhos – criam belíssimos ambientes. Tudo está no sítio certo.

“J’Arrive À La Ville” é dedicada a Marselha, antiga cidade portuária onde Lhasa compôs parte de The Living Road, o mais recente álbum e centro da setlist do concerto. É também dirigida ao seu bisavô que, para se tornar invisível aos olhos dos seus pais que o viam como um ponto negro na família quando jovem, fugiu para lá.

Depois de uma longa passagem pela tradição chechena em “An Unhappy Small Country”, dá-se uma reviravolta no alinhamento. Aquando da interpretação de “Floricanto”, a primeira incursão por La Llorona, o povo exalta-se. A figura mítica que seduz os homens aos primeiros acordes de uma canção triste para os beijar e os transformar em pedra afinal não morrera. La llorona canta sobre uma valsa waitsiana e regressa, minutos mais tarde, em “De Cara A La Pared” e em “El Desierto”, dois dos temas mais aplaudidos da noite. No meio, ficara a mui bluesy “Small Song”, o tribal e negro “Anywhere On This Road”, revestido de uma percussão poderosíssima, e ainda uma versão divinal do fado “Meu Amor (Meu Limão de Amargura)”, escrito por Ary dos Santos e interpretado, no passado, por Amália Rodrigues.

O arrepio sussurrado (ainda melhor do que em disco) de “Pa’ Llegar A Tu Lado” parece anunciar o fim da actuação, mas os ataques ao coração não se ficam por aqui. A electrónica aconchegante em “My Name” (a piscar olho ao universo de Björk) ou os dois exercícios de ginásio em que “La Celestina” e “Los Peces” se transformaram foram igualmente desesperantes (elogio). O fôlego é recuperado em “Soon This Space...”, o derradeiro tema da actuação.

No final, Lhasa e companheiros de estrada – todos eles exímios durante a actuação – agradeciam a amabilidade e fugiam, no escuro. O público, rendido, chorava por mais. Lhasa mentira-nos, minutos antes, quando cantava "sing it all night long, til’ the morning come". Nós perdoamos, desta vez.
· 08 Jul 2004 · 08:00 ·
Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt
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