Jazz Em Agosto 2006
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
03-12 Ago 2006
Sob o signo de Coltrane, o Jazz Em Agosto 2006 foi inaugurado com a reinterpretação eléctrica da obra “Ascension” pela Orkestrova, frutuosa colaboração entre o quarteto ROVA e alguns grandes da improvisação mundial. Nos saxofones, o ROVA (Larry Ochs, Jon Raskin, Bruce Ackley e Steve Adams) mostrou-se em nível elevado, tanto na condução dos temas como nos improvisos (individuais e colectivos), tendo sido bem secundado pelo trompete do japonês Natsuki Tamura. No apoio, o trio guitarra (Nels Cline), baixo eléctrico (Fred Frith) e bateria (Tom Rainey) esteve energicamente imparável. Otomo Yoshihide, Thomas Lehn e Andrea Parkins mostraram muita atenção nos efeitos electrónicos - embora Parkins também tenha estado particularmente activa no acordeão. Jenny Scheinman e Carla Kihlstedt (violinos) aproveitaram alguns espaços para pequenas mudanças de direcção pouco eficazes. Em particular destaque esteve a fantástica clareza de som, resultado do fabuloso trabalho do engenheiro que conseguiu com que, no grupo de 13 músicos, cada instrumento conseguisse ser ouvido na perfeição. Musicalmente, valeu pela energia fulgurante da freezada e pelo equilíbrio e controlo colectivo. Depois do grandioso primeiro tema (a recriação de “Ascension”), a Orkestrova apresentou ainda uma reinterpretação de “After the Rain”, uma balada belíssima que serviu de compensação para os não-adeptos do free que resistiram até ao final. Foi uma bela abertura de festival, que ficou apenas alguns furos abaixo do aclamado disco editado pela ROVA/Orkestrova o ano passado.

Ao segundo dia de festival o inglês Evan Parker apresentou, num momento raro, um solo de saxofone soprano pontuado por incursões em temas jazz. Adaptando-se apropriadamente à temática do festival, Parker trouxe revisões pessoais de John Coltrane, Steve Lacy (os mais celebrados mestres do soprano) e também Thelonious Monk (que será, segundo Evan Parker, o ponto de ligação entre Trane e Lacy) - para o fim Parker mostrou um ainda original. Mestre da livre improvisação com quatro décadas de actividade, o saxofonista não se repetiu e assinou um surpreendente solo de soprano de imensa intensidade. Abriu com um potentíssimo tema baseado numa concentração de notas exploradas em forma espiral num sopro continuado de aproximadamente quinze minutos (espectacular exibição técnica de respiração circular). Foram quarenta e cinco minutos de fantástico saxofone soprano, mostrando as suas diversas tonalidades, por vezes quase parecendo que se tratava de um duo, pela sobreposição contínua de sons. Sem dúvida, dos mais altos momentos do festival da Gulbenkian.

Na noite de sexta-feira foi a vez do trio Nels Cline / Andrea Parkins / Tom Rainey. Depois da participação deste trio no projecto Orkestrova, o trio teve aqui espaço para demonstrar as qualidades individuais. Com a bateria enérgica (e pouca dada a invenções) de Rainey no fundo, coube a Cline e Parkins guiar a liderança. A guitarra expressiva de Cline excedeu-se em efeitos electrónicos e por vezes perdeu-se, tal foi a diversidade de linguagens que adoptou (longe do melhor “Cline free”, registado no disco “Immolation/Immersion” do seu trio com Wally Shoup e Chris Corsano). Os efeitos da pequena Andrea eram variados e imponentes, contrastando com a guitarra dispersa, mas sem conseguir uma unidade de som. O melhor da noite foram algumas bem conseguidas aproximações ao noise, num concerto que pecou por demasiada inconstância.

No sábado de tarde, antes dos concertos houve tempo para uma conferência de Evan Parker e a exibição de um filme. O improvisador ingles discorreu sobre a carreira de John Coltrane, mostrando o seu conhecimento aprofundado e explanando algumas ideias interessantes que focaram pontos diversos da vida artística do saxofonista americano. De seguida foi mostrado o filme “The Robert Herridge Theater: The Sound of Miles Davis”, um registo de 1959 originalmente produzido para a televisão americana CBS, que retrata duas facetas da música milesiana da altura: primeiro, o tema “So What”, interpretado pelo quinteto da época (John Coltrane, Wynton Kelly, Paul Chambers, Jimmy Cobb) e depois três orquestrações de Gil Evans para temas não originais.

No Auditório 2 o trio Larry Ochs / Fred Frith / Le Quan Ninh fez a sua estreia mundial. Fred Frith, que no acompanhamento da Orkestrova ocupou o baixo eléctrico, passou desta vez para a guitarra eléctrica. Com o percussionista francês Le Quan Ninh ocupado de um kit extremamente personalizado, coube a Larry Ochs (também do quarteto ROVA) tratar dos saxofones tenor e sopranino. Apesar da fabulosa e incessante criatividade, Frith foi musicalmente egocêntrico e não deixou espaços para os colegas de trio. Ninh acompanhou Frith na medida do possível, embora com poucas oportunidades para invenções próprias. Larry Ochs tentou aproveitar pontualmente alguns espaços, sem grande eficácia. As experimentações de Frith revelaram-se sempre interessantes, mas o conceito de grupo acabou por não funcionar. O dia de sábado terminou com o concerto de Mandarin Movie, entretanto já analisado pelo Miguel Arsénio.

Depois da actuação integrado no trio do dia anterior, Le Quan Ninh teve oportunidade de se mostrar em toda a amplitude. Com o seu kit único, recorrendo a um lote alargado objectos invulgares, foi construindo várias camadas de som sobrepostas numa inventividade permanente. Surpreendente, sempre numa cintilante criatividade, conseguiu deixar o público todo suspenso em cada som, durante aproximadamente 50 minutos. Após a ovação final, o percussionista deixou uma dedicatória para a situação no Líbano. Tal como o solo de Parker, este solo foi também um dos momentos maiores do Agosto 2006.

O primeiro fim de semana do festival encerrou na noite de domingo com a actuação da Corkestra. A pequena orquestra liderada por Cor Fuhler apresentou-se ancorada num forte sentido estrutural. Aproximando-se de um certo jazz de câmara, este projecto multinacional de base holandesa, condensa uma plêiade de referências reunidas pelo líder/pianista Fuhler. Com uma instrumentação rara, não evitou alguma incongruência, alternando entre formas pouco constantes, tendo alcançado os seus momentos mais felizes em alguns espaços (curtos) de libertação free.

O Jazz Em Agosto regressou na noite de quinta-feira, dia 10, para o concerto do Craig Taborn’s Junk Magic. O quinteto liderado pelo pianista/teclista Taborn, apresentado ao mundo no disco “Junk Magic” de 2004 (Thirsty Ear), é uma espécie de all-stars, integrando o saxofonista Mark Turner, o violinista Mat Maneri e o baterista dos Bad Plus Dave King, para além do baixista Erik Fratzke. Pleno de concentração e contenção, foi o projecto mais coerente do Jazz Em Agosto 2006. Recolhendo muitos elementos da electrónica, Taborn junta-lhes depois toda a classe dos comparsas. Turner adicionou o som polido do seu tenor, Maneri esteve pouco em foco, mas foi uma réplica eficaz ao saxofone. O baixo eléctrico deu a toada funky certa e a bateria de King soube pontuar criativamente, sem exageros. Com o disco saído há dois anos e com um grupo que revelava um entendimento fantástico dava a impressão que a banda levava já muita rodagem – mentira, foi a sua estreia e foi uma estreia fantástica. Plena de equilíbrio, concentração, foi uma actuação maior que o poema de Muhal Richard Abrahams (a abrir e fechar) salientou.

À semelhança do que aconteceu na noite anterior, na sexta-feira actuou novamente um quinteto assente na ordem colectiva e numa forte vertente composicional: o The Claudia Quintet trouxe uma proposta altamente organizada e um líder carismático. Desta vez sem electrónicas, destacou-se a invulgar instrumentação: vibrafone, acordeão e clarinete, para lá da base rítmica. Apresentando uma extrema fidelidade ao som dos discos - um som ancorado nas fronteiras do jazz menos estático com afinidades às margens do rock (pós-rock ou progressivo) - no anfiteatro ao ar livre houve muita segurança e pouca aventura. O líder Hollenbeck apresentou as músicas com humor certeiro, qual Seinfeld do jazz, naquela que terá sido, porventura, a proposta mais consensual do Jazz Em Agosto 2006.

No ultimo dia do festival da Gulbenkian o americano Larry Appelbaum apresentou a conferência Discovering Jazz Treasury onde se pronunciou sobre a descoberta das fitas que levaram à edição do aplaudido “Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall”. Larry revelou ainda que no gigantesco arquivo da Library of Congress se encontram várias outras pérolas nunca antes editadas em disco, como gravações de Coleman Hawkins, Zoot Sims com Chet Baker, a Dizzy Gillespie Orchestra com Lee Morgan ou um fantástico set do trio de Sonny Rollins - que os lisboetas tiveram oportunidade de ouvir em primeira mão. Seguiu-se depois o concerto dos Lisbon Improvisation Players com o convidado Dennis Gonzales.

Para finalizar ficou guardado o sexteto de Anthony Braxton. Figura inconfundível da música universal da segunda metade do século XX, Braxton trouxe até nós os seus conceitos próprios de musicalidade não-restritiva, interdisciplinar. Combinando aspectos da composição contemporânea com elementos do jazz, Braxton construiu um elaborado tecido com espaço para muitos devaneios individuais, bem como recorrentes interacções colectivas. A “Composition Nº 345” foi o mote para os vários intrumentistas (Braxton, Taylor Ho Bynum, Jay Rozen, Jessica Pavone, Chris Dahlgren e Aaron Siegel) desenvolverem um profundo mapa musical de elementos irrepetíveis. Mostruário privilegiado do jazz avançado da actualidade, o Jazz Em Agosto mostrou continuar a seguir a evolução dos tempos. O espectáculo grandioso que encerrou a edição 2006 foi a prova que a música jazz contemporânea é diversa, complexa e imensamente rica.
· 03 Ago 2006 · 08:00 ·
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
RELACIONADO / Evan Parker