Hype @ Tejo
Terrapleno de Santos, Lisboa
08 Jul 2006
O hype, enquanto balão de estabilidade incerta, arrecada suspeitas e convertidos um pouco por todo o mundo. A sua progressão é flagrantemente territorial e é frequente morrer inadaptado durante movimentos migratórios. Enquanto certame ribeirinho apostado em atrair aficionados de ritmos dançáveis, o Hype deste ano cativava pelo risco de algumas escolhas inéditas (Atmosphere, Kudu), mas parecia à partida incapaz de agrupar os convocados numa coesão que terá existido apenas na dominância brasileira dos ritmos escutados à Zona Hype (o palco secundário que, a partir de certa hora, passou a gozar de estatuto principal para evitar a dispersão). Além disso, tinha contra si o facto da sua hora coincidir com a de um jogo que, apesar de apenas honroso, fez parar o país de igual forma. O Terrapleno de Santos ficou longe de se encontrar plenamente cheio para receber um Hype que demasiadas vezes rondou a temperatura amena.
Kudu
Vale a pena conhecer de perto as voluptuosas qualidades de front-woman a Sylvia Gordon, imponente vértice feminino do triângulo que forma em palco a subterrânea ameaça electro-disco Kudu - emergida de Brooklyn Zoo, foco de efervescência de uma Nova Iorque fora de horas. Sylvia é diva negra de corpo inteiro e ostenta umas curvas roliças capazes de resgatar Notorious Big ao descanso eterno. Sobre um palco os Kudu posicionam-se como guerrilha cuja táctica territorial incide em linhas obesas abundantemente artilhadas de néon (tal como denúncia o cordão luminoso que serpenteia a bateria fervente de Deantoni Parks). Em determinadas circunstâncias aproximam-se do que seriam os Goldfrapp – agrupados e não apenas Allison – se impulsionados por uma frontal atitude afro. Torna-se inevitável escapar ao assolapado charme Kudu quando tudo este rubor carnal é servido a um palmo do nariz. Para que este cocktail seja imediatamente explosivo, falta uma combinação mais compacta de clássicos viciantes que pode muito naturalmente vir a ser garantida com mais um par de álbuns de porte equivalente ao Death of the Party, que, para já, é uma das agradáveis surpresas deste ano.
Atmosphere
É brutalmente irónico observar como Atmosphere se debate por garantir a atmosfera certa ao decorrer da prestação que o trouxe até Santos. Isto porque uma qualquer anomalia relacionada com a distorção de graves persiste em arruinar a noite ao prodigioso Sean Daley (aka Slug) e restante crew. Quando assim é, presume-se que o gozo alcançado não seja tanto como o assumido no título do mais recente disco da turma de hip-hop de cariz D.I.Y., assumidamente residente à esquerda do epicentro MTV (que satura e repele os ídolos do género a uma velocidade brutal). Contudo, não há credibilidade indie que sobreviva a um terramoto de graves que torna os presentes insensíveis a toques vibratórios de telemóveis. O DJ residente vê-se obrigado a mudar a maquinaria para a torre de controlo de palco, enquanto Slug e o seu calvo associado fazem os possíveis para contornar o embaraço: beatboxing espontâneo acompanhado por um desenfreado rimar contra a maré de condicionantes, stand-up comedy dispensável e desabafos algo descabidos que dão o público como total desconhecedor do enorme talento que desfila em palco (isto quando uma mão cheia de presentes – masculinos e femininos – estavam perfeitamente sincronizados com a avalanche verbal expurgada). A regularização atempadada da ordem técnica ainda vale uma intensa passagem pelo clássico “God Loves Ugly” e, já bem perto do final, a samplagem daquele riff imediatamente reconhecível que os Nirvana pilharam aos obscuros Schocking Blue para “Love Buzz”. No fim, sobrou a sensação de que as condições atmosféricas não foram – por capricho – favoráveis a Slug e máfia anexa.
Téléphatique
Ao cantar, a peso-pluma Mylene espalha um embriagante perfume paulista pelo palco da Zona Hype, à medida que, em segundo plano, DJ Periférico arranco aos pratos e digitália diversa o que de mais prático e eficaz pode suscitar o passado recente do pote brasileiro em permanente ebulição: o breakbeat pós-DJ Patife, o electro debochado das Cansei de Ser Sexy (para quando a vinda da banda que agora edita a Sub Pop?), o funk que a energia de Cidade de Deus celebrizou à escala global. A temperatura nostálgica sobe quando a dupla Téléphatique se afoita a uma convincente recuperação electro-mangue do clássico “A Cidade”, um dos expoentes máximos conhecidos a quem, com toda a justiça, merece o título de arquitecto da música brasileira contemporânea – Chico Science e a sua Nação Zumbi. Bastou a tal versão para recordar a gloriosa e única edição do Festival Mangue Tejo na Praça Sony (num tempo remoto em que os Ornatos Violeta eram cabeças de cartaz acima dos Da Weasel). Os Télépathique são sempre bem-vindos até ao Lux ou espaço de carácter semelhante.
Hot Chip
Sou obrigado a reafirmar a minha incredibilidade perante as honras que merecem estes Hot Chip, que no Terrapleno de Santos reproduzem quase na exactidão a mesma boçalidade nerd que passou por concerto no Sónar há pouco menos de um mês. Com algum esforço, tento descobrir a quase uma hora de concerto (que parece uma eternidade) qualquer substância que não esteja directamente associada ao facto de terem James Murphy como patrão. Contudo, não chega o selo da DFA para evitar a redonda displicência que afecta todos os presentes incrédulos com o desespero dos Hot Chip em articular um monte de teclados e um cowbell com vista a iluminar porção de percepção capaz de distinguir quaisquer duas músicas entre si. Para descrição mais detalhada do concerto, aconselha-se a consulta da reportagem efectuada no Sónar que relata concerto em tudo idêntico. Absurdamente irrelevantes.
Massive Attack
Perto de cumprirem duas décadas de existência, os Massive Attack – enquanto veículo gerido pela vontade sombria de Robert “3D” del Nadja – acusam em demasia o gigantesco intervalo de temperatura que separa a canónica miscelânea urbana do primeiro Blue Lines da irreversibilidade gélida em que mergulhou o colectivo assim que fez estalar o cristal à 100th Window. Pois se soa repetitivo escutar invocações recuperadas aos intocáveis três discos iniciais (presenciar uma vez mais “Unfinished Sympathy” é deja-vú quase criminoso), não basta ao novo material a postura vampírica-contestária de del Nadja para semear alguma esperança relativamente ao que ainda podem ter a provar uns Massive Attack cujo permanência no activo deve cumprir-se por motivos que não apenas saudosos. Contudo e porque a reputação não se colhe como feijões, sobra à entidade de Bristol uma força capaz de mover consigo entidades vocais como Elizabeth Fraser (a eterna Cocteau Twins que empresta a voz a um “Teardrop” que, mesmo assim, continua inesgotável) e Horace Andy (a lenda caminha e cumpre generosamente um “Hymn of the Big Wheel” cujo optimismo simplório podia até gerar sem a banda que o acompanha). Como derradeiro argumento a favor de uma pertinência fragilizada, age também o regresso de Grant Marshall, o crucial membro que havia abandonado os Massive Attack para se dedicar mais atentamente à vida de família. Com a sua prestação, “Karmacoma” volta a ser tão perturbado e turvo como na altura em que foi idealizado. Tudo o que intercala os momentos sublinhados fica aquém do esperado e questiona a pertinência da continuidade de uns Massive Attack que dificilmente recuperarão do marasmo tri-dimensionalmente sobranceiro em que se encontram perdidos desde que Robert del Nadja politizou excessivamente a frente de ataque.
Kudu
Vale a pena conhecer de perto as voluptuosas qualidades de front-woman a Sylvia Gordon, imponente vértice feminino do triângulo que forma em palco a subterrânea ameaça electro-disco Kudu - emergida de Brooklyn Zoo, foco de efervescência de uma Nova Iorque fora de horas. Sylvia é diva negra de corpo inteiro e ostenta umas curvas roliças capazes de resgatar Notorious Big ao descanso eterno. Sobre um palco os Kudu posicionam-se como guerrilha cuja táctica territorial incide em linhas obesas abundantemente artilhadas de néon (tal como denúncia o cordão luminoso que serpenteia a bateria fervente de Deantoni Parks). Em determinadas circunstâncias aproximam-se do que seriam os Goldfrapp – agrupados e não apenas Allison – se impulsionados por uma frontal atitude afro. Torna-se inevitável escapar ao assolapado charme Kudu quando tudo este rubor carnal é servido a um palmo do nariz. Para que este cocktail seja imediatamente explosivo, falta uma combinação mais compacta de clássicos viciantes que pode muito naturalmente vir a ser garantida com mais um par de álbuns de porte equivalente ao Death of the Party, que, para já, é uma das agradáveis surpresas deste ano.
Atmosphere
É brutalmente irónico observar como Atmosphere se debate por garantir a atmosfera certa ao decorrer da prestação que o trouxe até Santos. Isto porque uma qualquer anomalia relacionada com a distorção de graves persiste em arruinar a noite ao prodigioso Sean Daley (aka Slug) e restante crew. Quando assim é, presume-se que o gozo alcançado não seja tanto como o assumido no título do mais recente disco da turma de hip-hop de cariz D.I.Y., assumidamente residente à esquerda do epicentro MTV (que satura e repele os ídolos do género a uma velocidade brutal). Contudo, não há credibilidade indie que sobreviva a um terramoto de graves que torna os presentes insensíveis a toques vibratórios de telemóveis. O DJ residente vê-se obrigado a mudar a maquinaria para a torre de controlo de palco, enquanto Slug e o seu calvo associado fazem os possíveis para contornar o embaraço: beatboxing espontâneo acompanhado por um desenfreado rimar contra a maré de condicionantes, stand-up comedy dispensável e desabafos algo descabidos que dão o público como total desconhecedor do enorme talento que desfila em palco (isto quando uma mão cheia de presentes – masculinos e femininos – estavam perfeitamente sincronizados com a avalanche verbal expurgada). A regularização atempadada da ordem técnica ainda vale uma intensa passagem pelo clássico “God Loves Ugly” e, já bem perto do final, a samplagem daquele riff imediatamente reconhecível que os Nirvana pilharam aos obscuros Schocking Blue para “Love Buzz”. No fim, sobrou a sensação de que as condições atmosféricas não foram – por capricho – favoráveis a Slug e máfia anexa.
Téléphatique
Ao cantar, a peso-pluma Mylene espalha um embriagante perfume paulista pelo palco da Zona Hype, à medida que, em segundo plano, DJ Periférico arranco aos pratos e digitália diversa o que de mais prático e eficaz pode suscitar o passado recente do pote brasileiro em permanente ebulição: o breakbeat pós-DJ Patife, o electro debochado das Cansei de Ser Sexy (para quando a vinda da banda que agora edita a Sub Pop?), o funk que a energia de Cidade de Deus celebrizou à escala global. A temperatura nostálgica sobe quando a dupla Téléphatique se afoita a uma convincente recuperação electro-mangue do clássico “A Cidade”, um dos expoentes máximos conhecidos a quem, com toda a justiça, merece o título de arquitecto da música brasileira contemporânea – Chico Science e a sua Nação Zumbi. Bastou a tal versão para recordar a gloriosa e única edição do Festival Mangue Tejo na Praça Sony (num tempo remoto em que os Ornatos Violeta eram cabeças de cartaz acima dos Da Weasel). Os Télépathique são sempre bem-vindos até ao Lux ou espaço de carácter semelhante.
Hot Chip
Sou obrigado a reafirmar a minha incredibilidade perante as honras que merecem estes Hot Chip, que no Terrapleno de Santos reproduzem quase na exactidão a mesma boçalidade nerd que passou por concerto no Sónar há pouco menos de um mês. Com algum esforço, tento descobrir a quase uma hora de concerto (que parece uma eternidade) qualquer substância que não esteja directamente associada ao facto de terem James Murphy como patrão. Contudo, não chega o selo da DFA para evitar a redonda displicência que afecta todos os presentes incrédulos com o desespero dos Hot Chip em articular um monte de teclados e um cowbell com vista a iluminar porção de percepção capaz de distinguir quaisquer duas músicas entre si. Para descrição mais detalhada do concerto, aconselha-se a consulta da reportagem efectuada no Sónar que relata concerto em tudo idêntico. Absurdamente irrelevantes.
Massive Attack
Perto de cumprirem duas décadas de existência, os Massive Attack – enquanto veículo gerido pela vontade sombria de Robert “3D” del Nadja – acusam em demasia o gigantesco intervalo de temperatura que separa a canónica miscelânea urbana do primeiro Blue Lines da irreversibilidade gélida em que mergulhou o colectivo assim que fez estalar o cristal à 100th Window. Pois se soa repetitivo escutar invocações recuperadas aos intocáveis três discos iniciais (presenciar uma vez mais “Unfinished Sympathy” é deja-vú quase criminoso), não basta ao novo material a postura vampírica-contestária de del Nadja para semear alguma esperança relativamente ao que ainda podem ter a provar uns Massive Attack cujo permanência no activo deve cumprir-se por motivos que não apenas saudosos. Contudo e porque a reputação não se colhe como feijões, sobra à entidade de Bristol uma força capaz de mover consigo entidades vocais como Elizabeth Fraser (a eterna Cocteau Twins que empresta a voz a um “Teardrop” que, mesmo assim, continua inesgotável) e Horace Andy (a lenda caminha e cumpre generosamente um “Hymn of the Big Wheel” cujo optimismo simplório podia até gerar sem a banda que o acompanha). Como derradeiro argumento a favor de uma pertinência fragilizada, age também o regresso de Grant Marshall, o crucial membro que havia abandonado os Massive Attack para se dedicar mais atentamente à vida de família. Com a sua prestação, “Karmacoma” volta a ser tão perturbado e turvo como na altura em que foi idealizado. Tudo o que intercala os momentos sublinhados fica aquém do esperado e questiona a pertinência da continuidade de uns Massive Attack que dificilmente recuperarão do marasmo tri-dimensionalmente sobranceiro em que se encontram perdidos desde que Robert del Nadja politizou excessivamente a frente de ataque.
· 08 Jul 2006 · 08:00 ·
Miguel Arséniomigarsenio@yahoo.com
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