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© Pedro Rios |
O
Dicionário da LÃngua Portuguesa (7ª Edição, Porto Editora) define "percussão"
como o "acto ou efeito de percutir; pancada; embate; choque". O concerto (ensaio/performance/jam contÃnua) do combo Mécanosphère + Steve Mackay Radon Ensemble explorou esta
definição dupla - foi um choque, um ribombar contÃnuo, por força dos vários
pares de baquetas que batem simultaneamente numa bateria, num bombo solto,
em pads e máquina de beats. Único tingimento melódico (mas igualmente
dissonante) na pintura rÃtmica: o saxofone do lendário Steve Mackay, o mesmo
de Funhouse dos Stooges. A voz de Adolfo Luxúria Canibal surge como
um manto, quando cavernosa e contadora de histórias, ou como exteriorização
de loucura quando envereda por uma sequência de onomatopeias (animais? vozes
em dor? diálogos mudos?).
A performance - o termo "concerto" é desadequado - de ontem é irrepetÃvel.
Em palco, músicos experientes da música "conceptual" seguem-se uns pelos outros,
sem que alguém tenha a voz de comando. Ora é o tribalismo de Sam Olhman, Le
Pilot Rouge e Scott Nydegger (careca de barba ruiva e olhos ameaçadores fixados
no público) que sugere frases no saxofone de Mackay, ora são os beats de Benjamin Brejon (tentativa de categorização à matéria electrónica: hip-hop
profundo, arrancado à s entranhas e aos batimentos arrÃtmicos do coração) que
impelem ao descontrolo dos outros elementos e à esquizofrenia onomatopaica
de Adolfo. Ou então, nada disto e antes um constante jogo de improviso, de
deslumbramento de trabalhar sem rede, de criar beleza dos cacos. Esta é uma
música de destroços, de restos e estilhaços que formam, paradoxalmente, uma
ossatura sólida.
Adolfo vai contando histórias surrealistas de estudos sobre as zonas erógenas
do automóvel, sobre orgasmos involuntários, sobre choques orgásmicos entre
um Rolls-Royce e uma carroça, mais orgasmos, mais sexo, mais violência contida.
Noutros "temas", Adolfo incarna animais ou esquizofrénicos, num debitar ofegante
de sons sem sentido, ou com o sentido único de manifestar inquietude. É nessa
postura que o projecto Mécanosphère - estrutura livre e aberta a colaborações
como esta - mantém pontos de contacto com os Mão Morta.
Nem rock, nem (free) jazz, nem electrónica, nem tribalismos. Ou tudo isso,
fundido, numa coisa nova, num som que é verdadeiramente "free", musical e
fisicamente. Os músicos saem do palco, dançam entre o público, repousam encostados
à paredes enquanto percutem (sempre) algo ou o próprio granito da parede.
Um urro final de Adolfo feriu os tÃmpanos das pessoas que encheram o Mercedes.
Não sabÃamos quanto tempo tinha demorado o concerto. E o que é que isso interessa?
pedrosantosrios@gmail.com