Deerhoof + Lobster
Lux, Lisboa
06 Jun 2006
As profecias estavam erradas. No dia que o calendário alinhou os três que antecipam a sua vinda, o diabo decidiu-se por ficar no seu escritório tórrido a planear que vidas arruinará com o vício das apostas durante o Taça do Mundo da Alemanha. Enviou, no seu lugar, o mais excêntrico e divertido dos seus serventes – aquele que, com a sensibilidade fashion de uma Cármen Miranda psicótica, enfiou um morango na pinha e se apunhalou com um par de adagas em forma de banana (uma nas axilas e outra na nádega esquerda). Até alguém inventar filtro que homologue definitivamente a anomalia cósmica que são os Deerhoof , os olhos comuns encontram, no lugar desse servente do diabo, Greg Saunier, John Dieterich e a pequena grande Satomi Matsuzaki. Pandilha que, com a saída do segundo guitarra Chris Cohen, viu-se forçada a reverter à condição de power trio. Quem não soubesse, nem sequer reparava que os autores de Milk Man actuavam privados de um membro tão cimentado quanto Cohen.

Além disso, leva a ausência de um guitarrista a que aquele estranho exotismo Deerhoofiano seja refinado ao ponto de um minimalismo que destaca as preciosidades à banda de Reveille. Apesar de ostentar um nervosismo labial quase símio, John Dieterich pode agora – e assim o fez - elevar a um destaque isolado o magnifico riff que impulsiona “Spirit Ditties of no Tone”. Riff aditivo que representaria dinheiro em caixa para a Nintendo se o tivesse utilizado num jogo de puzzle como Boulder Dash ou Klax. Sem arma de memorização fácil que lhe valha, o baterista Greg Saunier, a encarnação no-wave do Gualter da Rua Sésamo, aplica-se a fundo nos ritmos improvisados que servem de pulmão à bestinha. No lugar do vértice mais visível, Satomi só tem de ser igual a si própria: a partir do momento em que se desinibe – com uma “Flower” onde começou a jardinar o ar do Lux com a sua mão direita –, multiplica-se em sinaleira de invisibilidades, ginasta atómica, a namorada que merecia a natureza irrequieta do Vegeta. Confuso é não saber se será o peso triangulado a intervalar as fanfarras vocais de Satomi ou o inverso.

Os momentos marcantes foram muitos e proporcionam à recém-formada promotora do concerto, a Conta-Gotas, um precioso cartão de visita. "Rainbow Silhouette of the Milky Rain" recuperou apenas a matriz à sua versão de estúdio, enublou-se de distorção consonante e, em jeito de telegrama ao cuidado dos cépticos, comprovou a excelência dos Deerhoof num registo independente da lúdica intervenção vocálica de Satomi. “Milk Man” perde por completo o seu código de prioridades e assume uma dispersão muito mais desvairada. A pureza b-a-ba de “Dog on the Sidewalk” tropeçou em alçapão com acesso directo a divagação obscura. “Milking” mantém intocável o seu encanto "a go-go", próximo de qualquer coisa que Dick Dale escreveria entre duas tijelas de Estrelitas. O encore – a fazer recordar as mecânicas desconexas de “Tiger Chain” – é percorrido em jeito de anatomia de saturação ruidosa. A ordem não corresponderá necessariamente à verificada no concerto. Perdoem-me a desorientação. As meias da Satomi baralham-me as mnemónicas.

A electrizante entrega e generosidade dos Deerhoof compensa a curta prestação, que terá rondado a aceitabilidade dos 60 minutos e, ainda assim, incluído quase duas mãos cheias de temas bem populares (grande parte deles incluídos no gratuito disco ao vivo Bibidi Babidi Boo). Eles que fizeram por merecer mais do que um Lux com metade da sua lotação (tristemente) disponível, foram catchy e imprevisíveis em quantidades equilibradas e, a espaços , deixaram bem claro que não será o palmo e meio que mede Satomi a impedir os Deerhoof de serem grandes entre as entidades únicas que, a esforço, vai mantendo de pé o rock independente global.

Na antecipação dos Deerhoof, os Lobster haviam servido ao Lux um esbanjado menu de Fast Seafood, que, na sua transposição para palco (e fora dele), acaba por clarificar os efeitos que produz um fôlego olímpico exercitado com um preenchido calendário de concertos. Vai esse imenso pulmão expirando estridências que não evitam a comparação óbvia aos Lightning Bolt (que poderá, eventualmente, vir a ser exorcizada) e conduzindo à cova um stoner persistentemente evadido da sua condição monolítica. Em noite da besta, houve tempo para uma respeitável versão dos Black Sabbath e para sugerir todo o tipo de sósias para o imperante baterista do crustáceo bicéfalo (houve quem sugerisse Puyol, capitão do Barcelona, King Buzz dos Melvins ou o imberbe Jack Osbourne, filho do Príncipe das Trevas Ozzy).
· 06 Jun 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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