Depeche Mode
Pavilhão Atlântico, Lisboa
08 Fev 2006
Antes de depenar o anjo, uma anedota praticamente inédita: qual a diferença entre um fã de Depeche Mode e um de U2? O fã de Depeche Mode não tresanda a gasolina.

O fã típico de Depeche Mode denota porém o aspecto calejado de quem já traz aos ombros o desgaste de três ou quatro décadas, a aparência de quem procura dar um aspecto de pluma às pesadas asas de gárgula desenvolvidas através do convívio com tóxicos – à superfície da pele desenvolveu uma aderência propícia a que as penas da serenidade, lucidez e – admitamo-lo – algum aburguesamento cubram as cicatrizes e um núcleo sentimental negro como um tronco de árvore atingido por um relâmpago. A contribuir para esse sentido de revestimento, a temperatura pré-primaveril que se fazia sentir nas imediações de um Pavilhão Atlântico completamente esgotado e, a nível arquitectónico, apropriado ao futurismo funcional dos Depeche Mode. Por uma noite, a beira Tejo desviou o olhar do seu estuário em direcção ao santuário de purificação que se formou no interior do Atlântico.

Enquanto admirador atípico (Songs of Faith and Devotion diz-me mais que qualquer outro disco da banda), custa-me a pactuar directamente com a recepção efusiva de que são alvo “Just Can’t Get Enough” e “Personal Jesus” (a que reconheço todas qualidades, ainda assim). Talvez porque que em tempos chegou a ser impossível contornar a lavagem cerebral imposta pelas duas canções. Contudo, entende-se que, para satisfazer a sensibilidades e fetiches vários, o percurso deva incluir paragens nas variadas escalas temporais e a passagem pelos êxitos que, em termos práticos, serve de chamariz a circunstâncias deste porte. Determinante é o facto de Playing the Angel confirmar de facto o regresso à excelente forma (e grandes discos) e ser isso mesmo a equilibrar a alternância que sobre ele incide (já que se trata da novidade a promover). Calcemos então os sapatos dos Depeche Mode.

Tal como acontece em disco, "A Pain that I'm Used To" revela, em detonação compacta, as coordenadas necessárias para acompanhar os Depeche Mode actuais e, desde logo, prescreve aos presentes o ritmo de respiração apropriado para não perder os sentidos entre as viragens bruscas da montanha-russa emocional: o armazenamento de ar enquanto o terreno sonoro ainda é plano, a exalação em sincronia com o fabuloso refrão em crescendo e a contenção de oxigénio a cada vez que soa aquele alarme perturbante. A adaptação dos pulmões, claro está, implica a dose certa de masoquismo (a mesma que exige o afeiçoamento ao tal alarme que trata de dispersar multidões). Tudo ainda muito morno e a sensação de que o amadurecimento de "A Pain that I'm used" fará dele um projéctil infalivelmente incendiário num futuro próximo (dado a verificar no concerto agendado para 28 de Julho em Alvalade).

Logo de seguida, "John, the Revelator" condensa a simulação libidinosa de uma sentimento pélvico entre Elvis e Jerry Lee Lewis, gospel e um sintetizador à partida triunfante – o front-man Gahan assume poses capazes de fazer salivar uma jukebox, separa as pernas e braços em "V" e corporiza o X que bem pode ser um dos três, que, unidos e pintados de vermelho, servem como símbolo aos Depeche Mode (muito antes de alguém o ter associado ao canastrão Vin Diesel). Em conformidade com o anacronismo, o único projector então acesso exibia estilhaços indefinidos captados aos corpos de três alienígenas que parecem acabados de aterrar no universo a preto-e-branco do show de Ed Sullivan. Sim, o estatuto de novos clássicos está mais que cimentado no que se refere ao colectivo britânico. A omnipresente estética de Anton Corbjin, supervisor de todo o aparato visual em torno dos DM, lá está pronta a sugerir um contexto físico palpável que livra a aspiração cyber de saco roto, por lá se encontra multiplicada em dinâmicas decididas a impedir que o aspecto futurista do palco ganhe um aspecto tão camp quanto o dos cenários da série original de Star Trek. Pode-se mesmo afirmar que a surpreendente mutação da composição cénica valeria por si o tempo dispendido neste concerto.

“A question of time” é percorrida como bomba relógio em contagem decrescente, com os dígitos apontados ao tempo dos dois canais televisivos (e à falta de alternativas que isso implicava), posters da Bravo colados nas paredes e ao conspirativo planificar de uma saída nocturna à revelia de autoridade parental. Os saudosistas cedem prontamente e milhares dançam num transe alheio a qualquer imposição do calendário. Com "Precious", chega o momento de avaliar até que ponto se mantém inquebrável um refrão indiciador de fragilidade e paradoxalmente talhado para a profundidade das grandes salas. E aí tudo passa pelo cálculo vocal de Dave Gahan e como decide fazer sobrevoar aquele "yoooooou" à superfície da euforia do público. Gahan é irrepreensivelmente bem sucedido nessa tarefa, alcançando com isso uma envoltura colectiva que faz falta à escuta do single na sua forma hertziana (nesse caso é apenas mais um single). "Suffer Well" – novidade em alta rotação – carrega no peso das programações que lhe servem de infra-estrutura e, com uma imponência quase rave (perto da que inflama as prestações de Martin L. Gore como DJ), opera uma incisiva fixação de minimalismos que não se dão a complexos de terceira idade se comparados com os de alguém como Richie Hawtin. “Home” é sentidamente entoado por Martin L. Gore – que não se dá mal enquanto front-man temporário – e, visualmente, não dispensa sequer o afunilar de imagens e aspecto baço que em cinema representa código para regresso ao passado. Nostalgia em modo “gore”.

A enlaçar a noite em ambígua ternura, "Goodnight lovers" é pura redenção - partilhada tão intimamente quanto um espaço como o Pavilhão Atlântico permite, com Gahan e Gore unidos pela voz e localização à proa da rampa colocada à esquerda do palco. Urge também assinalar “Walking in my shoes” e “I Feel You” como momentos maiores da noite, nem que seja por serem os êxitos dos Depeche Mode que com mais estilo têm envelhecido (muito à custa de refrões tão avassaladores quanto os mais intemporais, embora menos saturantes que alguns conhecidos à primeira fase da banda).

Lá pelo meio e anunciado pela provocação Pavloviana de um “Never Enough” exibido em rodapé, houve tempo para a caricatural "Just Can't Get Enough". A admitir parte da sua aparência cartoonesca, a projecção de figuras animadas cujo traço terá tudo a ver com a ingenuidade que em inícios de 80 obedecia àquela linha de sintetizador que aglutinará gerações enquanto houver cabedal preto e laca fixante. Dominante e verificável entre cada rendição, a síndrome de "Just Can't Get Enough" manifestava-se entre os presentes que, sem qualquer acanhamento, repetiam o refrão como uma prece diante de Hebe, deusa da juventude. Contudo, faz todo o sentido persistir na aclamação desse pregão, atendendo a que reside na insaciabilidade o principal instigador da devoção – o sentimento religioso que domina a última década de DM e que anestesia a dor ao percurso de fé constantemente sabotado pela mundaneidade tentada pela sinalização néon. A todos os destemidos que não se acanharam em ocupar o lugar do anjo esfarrapado, a noite de 8 de Fevereiro permitiu um tempo delimitado de clarividência, uma panorâmica compreensiva que se vislumbra apenas a partir das alturas que fizeram derreter as asas de Ícaro.

Em antecâmara do concerto que realmente importava, dispus ainda de tempo para assistir ao que suspeito ter sido a melhor parte do concerto dos Bravery: os últimos 30 segundos de distorção e a saída de palco.
· 08 Fev 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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