Whomadewho, Jackson & His Computer band, Jamie Lidell - Oxigénio à Solta
Club Sabotage, Lisboa
26 Nov 2005

O ABS era uma discoteca manhosa que proporcionava das noites mais irritantes de sempre. Era aquele tipo de discoteca em que se entra e se odeia e se fica logo a pensar “O que é que eu estou a fazer aqui? Porque é que paguei?”, mas fica-se lá durante uns tempos porque se pagou e isso seria desperdiçar dinheiro, para além do mais pode ser que a noite melhore e tal. É óbvio que não melhora e ainda se acaba por ficar mais chateado. Mas voltava-se de vez em quando, como se o sofrimento nunca tivesse acontecido. Era, nesse sentido, uma experiência lúdica, que servia para recarregar o ódio por discotecas. Hoje em dia é o Sabotage, e logo a seguir à abertura serviu de palco para a Oxigénio à Solta, festa de aniversário da Rádio Oxigénio. Ou seja, parece uma discoteca normal, com gente colunável, cerveja a 3 euros, bebidas brancas a 6 euros, etc., só que com o twist de ter uma programação vagamente interessante (onde esta noite é a mais interessante, obviamente).

A abertura estava marcada para a meia-noite, mas é quase à uma da manhã que aparecem em palco os dinamarqueses Whomadewho, vestidos como futebolistas nórdicos dos anos 60 ou 70, com calças de fato de treino e t-shirts Adidas (um deles até tinha bigode), a mostrar porque é que são a nova coqueluche do punk-funk (que fazem à sua maneira especial). Os Whomadewho já cá tinham estado para uma after-party dos prémios MTV, numa atitude extremamente repreensível de trazer bandas internacionais a Portugal mas depois só deixar a gente fixe ou amiga de alguém entrar. Mas, finalmente, estrearam-se para o público em geral, para aqueles que não fizeram favores sexuais a este ou a esta para poderem entrar nas festas privadas, para as pessoas a sério. E ainda bem, pois são muito melhores em palco, ao vivo, com rios e rios de energia, riffs no sítio, guitarra ora funky ora punk, baixo groovy e tudo no ponto, no sítio, nunca desfazendo. Há falsetes que remetem, num passado recente (porque não são propriamente coisas originais), para os Scissor Sisters, melodias que remetem para os LCD Soundsystem (mas num contexto muito mais rock), e poses e guitarras angulares que remetem para os Franz Ferdinand. Mas à maneira deles, claro.

Whomadewho © Pedro Figueiredo

O guitarrista (o tal do bigode) é a estrela da festa, vai-se pondo em cima de colunas, vai para a frente do palco, a banda comunica por expressões faciais, etc. Há um crime cometido por eles – o de samplarem cowbell e não tocarem (o baterista usa maquinetas) -, um crime que devia ser punido com, no mínimo, cadeira eléctrica. É que cowbell é o melhor instrumento de sempre e também o mais bonito de sempre. Urge vê-lo e ouvi-lo ser tocado em todo o seu esplendor. Apesar das suas canções serem competentes, onde a banda brilha é nas versões de clássicos recentes das pistas-de-dança manifestamente chungas, “Satisfaction” de Benny Benassi e “Flat Beat” de Mr. Oizo.

Depois de uns tempos de DJ sets dos radialistas da casa, entra em palco Jackson Fourgeaud, cabelo algo grande, camisa fashion e toda uma pose cool. Começa a brincar com um laptop e algumas maquinetas, mas não se limita a reproduzir Smash, o seu disco de estreia como Jackson and his Computer Band. Há batidas abstractas, mas é nos momentos menos abstractos que Jackson brilha, quando dá para bater o pé e consegue criar calor através de meios digitais, daí se poder aplicar à música dele o termo digi-soul. Só num momento é que se ouviram vozes, aquelas que populam Smash, em “Utopia”, a faixa de abertura, que conta com a voz da mãe de Fourgeaud. Alguns momentos lembravam os Mouse on Mars, só que sem metade da pinta e do carisma. Muita gente não gostou, abandonou o círculo onde estava o palco e foi beber para o bar ou assim. Um concerto que pecou por ser demasiado longo e menos inspirado nalguns momentos, onde não ajudava à festa ser só um DJ a brincar com máquinas electrónicas, inclusivamente o laptop, o instrumento menos visualmente apelativo de sempre.

Jackson Fourgeaud © Pedro Figueiredo

Mesmo apesar do atraso verificado na abertura da festa, de alguma forma a organização conseguiu cumprir o horário marcado (Jamie Lidell começava às 4 da manhã e começou poucos minutos depois). Pouco antes circulavam rumores de que Jamie estaria interessado em dar um concerto mais techno, pelo que os DJs da Oxigénio decidiram passar soul e funk para Jamie esquecer essa ideia e mostrar o que faz de Multiply, o disco que o confirma como a maior voz (e o melhor falsete) da brit-soul. Mas acontece que Jamie Lidell é um brincalhão e um laptopper na sua origem, sendo Multiply só uma faceta do seu trabalho. Talvez ele próprio resuma isso na perfeição em “What’s the Use”: “I’m a question mark, a walking, talking question mark.” Assim, o rapaz afirma-se como muitas coisas e não só uma de muitas coisas. O seu concerto tem um começo enganador: o rapaz entra em palco e começa a cantar “Game for Fools”, balada que fecha Multiply em grande, antevendo um concerto de karaoke e debitação de “êxitos”. Mas não, Lidell tinha outros planos. Ele e Pablo Fiasco, homem das múltiplas câmaras espalhadas pelo palco, dono de uma vestimenta de ave e uma máscara de esferovite, que ia dando um movimento alucinado à já movimentada e alucinada postura de Lidell em palco.

Tinham planos para fazer o que quer que lhes apetecesse. Lidell começa a fazer melodias e sons com a boca, a samplá-los e loopá-los, pondo-os uns por cima dos outros, tocando teclado por cima, fazendo beat-box, de repente passam a ser uma canção, “What’s the Use”, “Music Will not Last” ou outra qualquer. O falsete está sempre em alta, regressa ao refrão de uma ou outra canção, faz umas brincadeiras techno (mais uma vez há cowbell samplado) em que o beat vem quase sempre da sua boca, de repente dispara-se “A little bit more, a little bit more” de “A little bit more”. Lidell canta, sempre com as filmagens de Fiasco a passar atrás dele, imagens alucinadas que incluem a cabeça de Martin Luther King num boneco qualquer a passear por edifícios, outras imagens e imagens captadas em tempo real, a dada altura até dá a Lidell um capacete com uma câmara para filmar. O karaoke surge outra vez em “This time”, com os “whoa, whoa” poderosos do rapaz, num singalong do público que conhecia as canções. Lidell pede que o público estale dedos, canta e depois vai-se embora. Volta para um encore com “Multiply”, o mega-êxito que toda a gente conhece e canta.

Jamie Lidell © Pedro Figueiredo

Sempre com cara de quem está a brincar, a gozar (ou talvez seja essa a sua cara normal), Jamie Lidell é nessa medida como o seu companheiro e amigo Gonzales, o canadiano que se arma em hip-hopper mas é também um produtor e um pianista dotado. Parece que está a brincar, claro, mas é uma brincadeira feita de forma séria, esta de Lidell armado em homem da soul. Porque por detrás de tudo há talento genuíno, há canções genuínas, há melodias óptimas e uma excelente voz. E é aí que reside a magia de Lidell, é na brincadeira séria e genuína que faz com a soul que o rapaz brilha.

Foi uma noite interessante, num espaço outrora repugnante, e isso é sempre bom. Há muitos pontos a recordar: a estreia dos Whomadewho e de Jackson and his Computer Band; a confirmação de Jamie Lidell como entertainer por excelência (alguém devia tirar a designação the entertainist ao seu amigo Gonzales e pô-la a Lidell); e a existência de uma área VIP onde era possível entrar sem muito controle e onde se pagavam bebidas, do estilo “és fixe e VIP mas também pagas”, o que é óptimo para os VIPs e demais colunáveis que se acham acima dos comuns mortais.

· 26 Nov 2005 · 08:00 ·
Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
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