Lou Barlow
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
11 Nov 2005

Para alguém cujo gosto musical mudou irremediavelmente após um primeiro contacto com Bubble and Scrape - disco dos Sebadoh onde o songwriting sobrevivia sofridamente ao sufoco lo-fi -, assistir a uma actuação de Lou Barlow - com a proximidade imediata a que a Zé dos Bois permite - assumir-se-ia à partida como uma experiência religiosa adiada durante dez anos. E assim acontece, já que Barlow opera o milagre da intimidade ao transformar o aquário (é essa a alcunha adquirida) da sala lisboeta num espontâneo lar reservado a quem bater à porta para escutar o que o anfitrião tem a partilhar. O conforto descomprometido do lar encontra-o limitado à essência de duas guitarras alternadas, dois microfones (um desses com efeito), sintetizador manobrado a espaços e a voz moderada consoante as situações que invoca (entre a inquietude cavernosa dos anos Sebadoh e a ternura à flor da pele do último Emoh). Evidenciando marcas características do homem de família que escapa até ao Bairro Alto numa sexta à noite (aquele aspecto de quarentão naturalmente adaptado ao meio maioritariamente ocupado por gerações sucessoras), Lou Barlow proporciona um mais que generoso serviço de juke-box humana a todos os presentes, ao avaliar com igual consideração todos os pedidos que o público repescou a discos de Sebadoh, Sentridoh (acervo de requisições mais tímidas) e – pasme-se – Folk Implosion (que valeu à actuação uma “Pearl” polida pelo tempo que passou adormecida em reportório). Contrariando aquela ideia do ícone indie que firme mantém a congelação dos projectos que conduz, o Lou Barlow de palco passa a ser “uno”, entidade messiânica incumbida de manter viva a crença nas seitas que um dia formou. A Zé dos Bois escutou atenta a palavra.

© Andreia Roque

Os últimos anos dedicados à alquimia da canção ditam que a performance “nua e crua” de Lou Barlow se resuma a isso mesmo, canções. E, ao jeito de súmula perfeita para o período de duas horas, por ali desfilaram as diferentes facetas do songwriter: as novas criações (a apontarem para a continuidade do tom caseiro de Emoh), um promissor protótipo de canção (em processo de construção, segundo o músico), um par de galhardetes para a dinastia Bush, os pontos altos extraídos ao último álbum em nome próprio (com “Royalty” a transformar o aquário numa amargurada corte e “Mary” a oferecer uma perspectiva bem mais mundana do mais célebre episódio bíblico e a abrilhantar a aura cronista de Barlow). Houve tempo para os clássicos “Magnet’s Coil”, “Soul and Fire”, “On Fire” – os tijolos da casa Sebadoh que, empilhados no contexto a solo, abrigam a solidez de Lou Barlow enquanto escritor de canções com direito a ombrear com os Sufjan Stevens e Sam Beams (mencionados por mérito) dos tempos de hoje. As duas horas de actuação foram simpáticas para com a melhor colheita Sebadoh (Bubble and Scrape e o abundantemente representado Harmacy, que ainda não ganhou uma ruga que o afaste dos auto-rádios). O homem é nobre e, após persistentes tentativa nesse sentido abre mão de "Round-n-round", versão recuperada à velha glória hard-rock RATT e que, segundo Barlow, apenas resulta humoristicamente aos ouvidos dos americanos da sua idade. Refere que nós europeus a recebemos como uma canção normal. E que canção...

A lamechice pegada nunca chega a constituir risco porque a emoção refresca o seu fôlego com o humor dos episódios partilhados por quem inventou para si o loobiecore. Fala-nos do bife tenrinho que se derreteu na boca à refeição (fosse a comer o mesmo no Minho e era mais um ilustre músico que Portugal convertia aos seus prazeres) e na forma calorosa como as pessoas por cá acarinham a sua filha Hannelore. Divertido foi dar conta das subtis caretas no rosto de Barlow, a cada vez que alguém apelava às glórias eléctricas dos Sebadoh (“Hillbilly II”, “Elixir is Zog” ou o hit single “Ocean”, que não passa sem aquela falsa surf guitar). Sobrou um brilhantemente adaptado “Homemade” para saciar a vontade à gula de quem não passa sem as malhas dos Sebadoh. Contudo, nenhuma omissão contribuíria para abafar a presença do ícone indie involuntariamente tornado herói folk. As saudades não tardarão. A canção ocupou o lugar da castanha assada no dia que, a partir de agora, será conhecido entre os presentes na Zé dos Bois como Dia de São Barlow.

· 11 Nov 2005 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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