A
música marginal portuguesa atravessa um momento muitíssimo interessante e
único. Durante 2005, têm sido múltiplos os sinais de que uma pequena revolução
se está a processar ao nível do underground, com bandas, espaços (Galeria
ZDB à cabeça, Passos Manuel e outros logo a seguir), editoras (sem vergonhas
do CD-R ou do mp3) e gente interessada a acenar as duas mãos numa sonora manifestação
de existência criativa.
O namedropping é inevitável e serve para destacar um conjunto de artistas
singulares: Frango, CAVEIRA, dAnCE DAMage (e bandas conexas, como os Tropa
Macaca e Símio Superior), Gala Drop, Loosers, An Octopus in the Bathtub, Fish
& Sheep e outros menos visíveis vão desenhando uma curiosa paisagem de música
exploratória feita em Portugal, sem tentações copistas. É tudo ainda fresco
e esse sentimento de novidade e urgência contamina positivamente os actores
da comunidade.
A noite de sexta-feira foi sintomática do sentimento de comunidade que se
começa a gerar: Tropa Macaca e Fish & Sheep assinalaram o lançamento do split
Para o Inferno Com Eles, com edição da louvável e novíssima Lovers&Lollypops.
O local do concerto foi o Passos Manuel, dono da programação musical mais
corajosa do Porto. Estavam reunidos os ingredientes certos para uma celebração
e assim foi, apesar de continuar a serem quase sempre as mesmas caras na audiência.
![]() |
© Ana Sofia Marques |
De um lado do palco, André “Símio Superior” Abel (também dAnCE DAMage) fitava
Ju-undo, esperando calmamente o início do concerto dos portuenses Tropa Macaca.
Momento sintomático: dir-se-ia que o par de namorados transporta para a música
a intuição própria da "vida que têm juntos" (palavras deles). Os dois músicos
dialogam através de maquinaria múltipla – teclados, uma guitarra eléctrica,
pedais de efeitos, instrumentos aparentemente preparados pela banda – pousada
em duas mesas.
Ju-undo cumpriu as funções rítmicas, por vezes demasiado monótonas, produzindo
ritmos que se comiam uns aos outros, em jeito de música de dança ou evocação
tribal esquizofrénicas; ao lado, André Abel introduzia melodia, gerando momentos
interessantes como uma curta passagem estelar lo-fi num órgão, ou abstracção
sónica na guitarra eléctrica que nunca chegou a excitar verdadeiramente. Se
as premissas podiam evocar uns Excepter, falta ainda aos Tropa Macaca a maturação
que lhes permita ser mais do que um projecto simpático e genuíno.
![]() |
© Ana Sofia Marques |
Uma bateria, uma guitarra e um microfone que só uma vez foi utilizado foi
tudo quanto bastou para os Fish & Sheep explicarem porque é que são a mais
interessante banda nacional a integrar o ruído e a improvisação como partes
fundamentais da sua estética, que, apesar da liberdade conceptual do projecto,
se revela coerente e idiossincrática, apesar da tenra idade do grupo (têm
pouco mais que um ano).
Afonso Simões (Phoebus) é um baterista notável, capaz de passar rapidamente
do free (jazz? rock?) ao rock mais extremo (louvada seja a pedaleira
dupla) num discurso fluído e totalmente livre. Do outro lado do palco, Jorge
Martins (também dos Frango) funde-se com a massa sonora multi-texturada que
gera a partir da guitarra eléctrica: contorce-se, é "projectado" para a frente
e para trás, reage fisicamente perante cada caminho sinuoso que o som toma,
rejeita a formalidade clínica de muitos "artistas noise". É um dos músicos
mais expressivos para se ver em cima de um palco.
Na primeira peça, o melhor momento do concerto, um riff eterno de Jorge
Martins remetia para o proto-punk de uns Stooges conspurcados por mil fontes
de ruído. Da guitarra saem vários riffs que se cruzam num céu de fuzz;
na bateria, raras vezes uma frase rítmica é repetida. Noutros momentos, mais
perto do final, Jorge Martins explora o drone e o space rock,
mas de forma mais desconstruída do que nos Frango.
Apesar da distância em relação ao público, o que prejudicou a imersão na "experiência"
Fish & Sheep, o duo mostrou porque é que há razões para acreditar num bom
futuro para a música mais radical portuguesa. O presente está aí e é óptimo.
pedrosantosrios@gmail.com