Seu Jorge
Aula Magna, Lisboa
03 Nov 2005

A responsabilidade de tocar o seu pandeiro
É a responsabilidade de você manter-se inteiro.
Por isso chegou a hora
Dessa roda começar
Samba Makossa da pesada
Vamos todos celebrar.
- “Samba Makossa” - Chico Science & Nação Zumbi

© Mauro Mota

“O samba ‘tá aí.” – era o mote madrugador entoado em coro por Seu Jorge e os quatro irrepreensíveis músicos que trouxe consigo até Aula Magna. E o samba lá estava. No cada vez mais icónico braço direito de Seu Jorge, no incenso ardente, na telepática sincronia a actuar como punho na coordenação dos cinco músicos, nos que dançam interiormente com as omoplatas assentes sobre os cadeirões doutorais e em quem não se resigna à inércia e opta por ladear as escadarias do auditório com aquela ginga que inunda o Rio de Janeiro por volta de Fevereiro. Por força de encaixe histórico, o samba estava essencialmente na língua portuguesa que proporcionou uma cumplicidade apurada entre público e banda em palco. Notas ao alto. O samba está no meio de nós.

Em tempo recorde para um artista que se estreava em palcos portugueses, Seu Jorge neutraliza o cepticismo que possa ter gerado o facto da sua carreira ter progredido, até aqui, num regime híbrido que o divide entre a música e o cinema. Com a descomplexada alegria do Saci Pererê, o Mané Galinha de Cidade de Deus evidencia – sem recorrer a um enclave forçado de virtuosismos – a sua aura e multiforme talento (a certa altura, o esguio carioca afoita-se sem mácula a um MCing que rivaliza com o de Marcelo D2, com quem, de resto, já colaborou). O omnipresente samba é cultivado com o inconformismo característico de quem não quis ser mais um “favelado” a constar do anonimato da estatística. Por isso, em palco as composições ganham uma identidade renovada: “Mania de Peitão” é convertido a um ritmo mais “dengoso” e o single “Tive Razão” consegue ser ainda mais harmonioso no optimismo ondulado daquele cantarolar que antecede ao “demorou, vai ser melhor”. A paranóia teatralizada - à maneira intelectual de Tom Zé - surgiu com “Chatterton”, cuja esquizofrenia podia apenas partir de uma alma “geminiamente” fingidora (Seu Jorge, tal como o signatário destas linhas, nasceu a 8 de Junho).

© Mauro Mota

Quando o ritmo serenou, houve tempo para momentos de maior intensidade dramática. O samba em surdina de "Eu sou favela" é construído sobre uma lírica panfletária, denúncia social que termina em comoção do artista, que deixa escapar algumas lágrimas. “Life on Mars” – digno representante das versões de David Bowie interpretadas em português em Um Peixe Fore de Água- reduz os índices de gravidade à sala universitária e, por uma noite, Ziggy Stardust passa a ser Zeca Pó-de-estrelas. Ambos resultam em momentos inesquecíveis. Nota máxima também para o recital de percussão oferecido por três dos músicos acompanhantes. Podiam aproveitar a estadia na Aula Magna para receber o diploma de doutoramento na arte de tamborilar.

Seu Jorge encarou a ocasião com a devoção incondicional de um adepto de futebol. A entrega foi recompensada com ovações de pé por parte de um público que certamente nem se terá recordado de que, nessa mesma noite, a indústria musical desfilava toda a sua plasticidade a alguns quilómetros dali. Enquanto a Aula Magna se rendia progressivamente a Seu Jorge, o seu clube do coração - o histórico Flamengo (sujeito a ser despromovido na edição actual do campeonato brasileiro) - garantira uma impressionante vitória no terreno do rival Palmeiras. Em duas extremidades do Atlântico, dois cenários completamente dispares, uma mesma noite ganha.

· 03 Nov 2005 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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