Out.Fest
Barreiro
3- Out 2019
Eis-nos de volta a um local onde já fomos imensamente felizes. O Out.Fest voltou ao Barreiro, e em força: ao longo de três dias, passaram por ali alguns dos nomes mais sonantes e interessantes da música dita "experimental", termo que designa tudo o que não é fácil de se escutar (mas, se fosse fácil, não era para nós). Tribos diversas acorreram à Margem Sul, de metaleiros a hipsters, de curiosos a académicos, de gente das artes ao povo. A única cultura ou subcultura é a da música: a inviolável, a exploratória, a que desbrava novos caminhos por entre o som.

O caminho começou a ser trilhado por Gabriel Ferrandini, em altas após o lançamento de Volúpias, álbum que o tem consagrado (ainda mais!) como um dos grandes nomes da bateria e do jazz nacionais. Na Igreja Paroquial de Santo André, e iluminado por frescos vários detalhando a vida e o sofrimento de Cristo, Ferrandini trouxe um certo paganismo: acompanhado pela Camerata Musical do Barreiro e por um Miguel Abras que, em conversa informal, garantiu que não estava nervoso (ainda que alguns tiques pudessem ter demonstrado que sim...), o músico mostrou um poema falado e tocado - "Kimbo Slice" - que juntava a entoação xamânica de Abras às cordas e à concentração máxima que exibia na percussão, quase como que uma mistura de Penderecki com os Macumbas. Houve quem fechasse os olhos, meditando, e no final até houve espaço para um salvé! aos céus, braços estendidos na busca da redenção. É daqueles concertos que não dá para explicar - e que se deseja ter sido gravado, para o reouvirmos e sentirmos de novo a beatitude.

Logo a seguir, Peter Evans mostrou força e fogo, a solo e apenas com o seu trompete. Mal tomou o seu lugar no centro da Igreja, começou imediatamente a tocar, sem quaisquer rodeios - apenas saraivadas de balas sónicas ressoando como um culto dentro do culto, massa e velocidade estrondosas e a sensação de que o futuro deixou de existir a partir daqui, pois nada se assemelhará (é um exagero, é um cliché, mas, caramba!, vivemos todos de sensações). Fascinados pelas inspirações que ressoavam antes de nova investida no trompete, sorrindo de espanto quando o bocal é aberto e deixa vomitar toda a saliva nele contida, perfurados pelo enxame de abelhas jazz a que soaram as três peças que apresentou (a dada altura o sopro parecia um feedback eléctrico, o que é genuinamente fascinante), não poderemos deixar de dizer - apesar de, ou até por ter sido numa Igreja - que Evans deu um concerto absolutamente incendiário.

Lamentavelmente, nem sempre é fácil ir até ao Out.Fest; a logística chateia, ainda para mais quando se reside no outro lado da margem do Tejo e se é obrigado a seguir de viatura própria, para que não existam problemas posteriores com os transportes ou a falta de sono. Pelo que, no segundo dia, só foi possível apanhar um pouco da performance de Ilpo Väisänen, ex-Pan Sonic, que à ADAO trouxe não o techno abrasivo, mas o drone e a electrónica ruidosa e ambiente. Por entre cumprimentos e copos, agiu como uma espécie de banda-sonora, escutada ao longe. O mesmo não se dirá dos Deaf Kids, que trouxeram rock ao Out.Fest - um rock abrasivo, metálico e sobretudo fodido, muralha de noise acompanhada por registos tribais e vocais imperceptíveis, a fazer lembrar o melhor e o pior dos Lightning Bolt (mas sem máscaras). Pouco mais de meia hora de caos depois, seguiriam para Barcelos, porque 400km fazem-se num instante.

O último dia de um festival que teve - e não é preciso mentir acerca disto - o melhor cartaz do ano corrente trouxe consigo uma das figuras imprescindíveis da electrónica, do experimental, do que quer que seja desta década a findar: James Ferraro. O norte-americano decidiu refugiar-se no fumo e numa brilhante luz azul para aquele que foi o seu regresso a Portugal, apresentando não a vaporwave que ajudou a construir mas uma música digital que, até dentro desse espectro mais exploratório, pareceu algo ortodoxa - não muito distinta, por exemplo, do que faz um Oneohtrix Point Never desta vida: ambiente, ruído (um bocadinho, na melhor parte do concerto) e repetição. Queríamos mais dele, e no final existia algum desapontamento. Mas pouco importa.

Nadah El Shazly, apontada como uma das grandes figuras do underground egípcio de hoje, trouxe consigo uma banda que começou por arrancar em modo free jazz, antes de trazer ao Out.Fest o que faz de facto mexer o melómano: as canções. Uma espécie de trip-hop, uma espécie de PJ Harvey, e até uma voz e melodias semelhantes ao nosso fado (para acicatar ainda mais a chama dos que vêm no género uma raiz árabe). Cantando no que supomos ser a sua língua materna, Nadah trouxe lamento e sedução em quantidades exactas, e até alguns gritos e repetições percussivas a fazer lembrar os Swans - antes de arriscar cantar sem amplificação naquele que foi o último tema da noite, tarefa complicada já que muitos optaram por continuar a meter a conversa em dia no meio do silêncio. Algo inglório mas sabemos que está ali uma pérola do deserto.

Os Dälek eram o nome mais esperado do cartaz e com bons motivos para isso. Não só porque não pisavam território nacional há largos anos, como também porque têm sabido construir uma obra praticamente sem falhas - Asphalt For Eden e Endangered Philosophies, os seus dois últimos discos, são disso exemplo. Apresentando-se em dueto, o grupo mostrou tudo aquilo que o hip-hop às vezes devia ser: agressivo, bruto, e não tão soulful ou jazzístico. Este não é um rap de rua; é um rap que vai beber às usinas e não aos subúrbios, à ferocidade do metal e não à das navalhas e das ganzas, um rap mais consciente que a 635345ª palavra de ordem contra governos vigentes. De "Echoes Of..." a "The Son Of Immigrants", passando por outros temas inacreditáveis e os quais já esquecemos porque, foda-se, às vezes nem dá para tirar notas de tão embevecidos que estamos a ver um concerto, os Dälek deram um dos grandes concertos do ano - e, assim, até vale a pena sair de casa para ver e ouvir música. Que voltem rápido para explorarmos todos juntos.
· 07 Out 2019 · 14:20 ·
Paulo CecĂ­lio
pauloandrececilio@gmail.com
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