ID_No Limits
Estoril
29-30 Mar 2019
O Lisboa Dance Festival mudou de identidade. Transformou-se. Revestiu-se. Agora já não é lisboeta, mas ainda dança e, desta feita, fá-lo sem limites. O ID_No Limits ocupou o Centro de Congressos do Estoril com dois dias de música electrónica e de dança, com dois dias onde o futuro parecia agora e o passado uma mera nota de rodapé - ou nem isso. A sala, mesmo em frente ao Casino do Estoril (e não consta que alguém tenha lá acabado a noite, no auge da sua inspiração alcoólica), é acolhedora e detentora de algo extremamente importante: um PA a sério. Obrigado por tudo, LX Factory e Hub do Beato, mas nunca ninguém dirá "porra, que saudades".
Observou-se isso mesmo durante a actuação / showcase dos Colónia Calúnia, que dentro do hip-hop tuga - seja lá isso o que for - são provavelmente o seu nome mais essencial, nos dias que correm. O colectivo parece fazer tudo de forma errada, i.e., fugindo às regras habituais do género, e o resultado não podia mais certo: graves apocalípticos, rimas carregadas de uma náusea Sartreana e urbana, beats abstractos e de cortar a pele à facada. É hip-hop para gente que gosta de sonhar com o fim do mundo, naturalmente. E quase mandou, literalmente, a casa abaixo; à medida que tocavam, minúsculos pedaços do tecto iam chovendo sobre as cabeças dos presentes dada a força do som. Que nunca encontrem a luz.
Já Madlib parece ter visto a luz: para que havia ele de se chatear se é comummente considerado como um dos melhores produtores da história do hip-hop? O norte-americano chegou, fez um DJ set para gente da velha guarda, carregado de temas da velha guarda, sem se aperceber que "a velha guarda" NÃO É NEM NUNCA DEVIA SER sinónimo de qualidade seja na música ou no futebol ou na política, foi abanando os braços perante um público mortiço que em outras situações - que é como quem diz, se o nome à sua frente não fosse "grande" - já se teria posto no caralho e desapareceu do palco tendo deixado atrás de si uma hora e meia de uma patetice pegada. Que isto sirva de lição: nunca tenham heróis.
Felizmente, IAMDDB foi, mesmo sem capa, a heroína que esta Gotham electrónica precisava. Nascida em Cascais e radicada no Reino Unido, a cantora e rapper recebeu uma enorme vaga de amor do público e respondeu a isso com uma actuação a roçar a perfeição, onde trap e R&B se foram cruzando, de forma enérgica. Extremamente importante, também: não se refugiou muito nas backtracks, coisa que tanto aborrecimento traz a quem gosta de ver concertos e não playback. Acabaria no meio do público, que afectuosamente dançou com ela. Não se sabe, no entanto, se este lhe terá dado os "charutos" que tanto pediu em palco. Entretanto, o cancelamento de Moullinex levou Xinobi a uma actuação surpresa noutra das salas, que tremeu com o poder do 4/4. E, no final, Pearson Sound fez o que pôde, mas não conseguiu arrancar gente a Shaka Lion...
Houve menos gente no Estoril no segundo dia do festival, talvez por ser sábado à noite e haver copos a beber, talvez porque a falta de um nome "histórico" tenha retirado o interesse a algumas pessoas, talvez porque nem todos têm disponibilidade para sair de Lisboa. Pouco importou isso para quem continuou a sentir-se maravilhado com o Centro de Congressos e com a sua acústica, desejando que este festival por aqui continue, e que outros festivais lhe sigam o exemplo.
Mas não foi por haver menos gente que não deixou de haver surpresas. Como os Meera, trio da Discotexas que foi até ali apresentar um pop/rock dançável construído à base de guitarras, teclados de onde provinham melodias house e uma bateria - e baterista - incansável. Presume-se que a banda não tenha lido o livro de Peter Hook sobre os New Order, em que este aconselha uma banda a nunca, mas nunca fazer de um/uma baterista também vocalista. Mas ela cumpriu, com distinção. Infelizmente, só foi possível aguentar vinte minutos de concerto após a insistência cansativa do teclista em ter o público mais próximo do palco.
Amigos músicos: não vos cabe a vocês nem a ninguém chamar pessoas para perto do palco. Se a música for boa o suficiente, o público entrará na onda. É escusado entrar por caminhos a roçar o fascismo hippie, filosofar que um concerto é um encontro de amor ou o caralho, ordenar quem pagou bilhete para vos ver a ocupar o lugar que vocês querem. A vossa função é tocar. Se ninguém dançou, paciência. Se ninguém levantou o cu da cadeira - e admite-se que os portugueses têm muito o hábito de ficar quietinhos em espectáculos que pedem mais emoção -, temos pena. Se há gente de braços cruzados, azar. Melhor sorte para a próxima. Só não nos fodam é a puta da cabeça entre cada tema. Por favor.
Até porque, à mesma hora, Kerox não precisou de recorrer a palhaçadas e choradinhos para pôr gente a dançar, mesmo que não fosse muita: bastou um acid sujo e uma electrónica altamente rítmica. O mesmo o fez Kamaal Williams, pouco depois, mesmo que tenha logo começado por dizer às pessoas que se levantassem (argh), antes de arrancar para um jazz/house de banda que irá, sem sombra de dúvida, entusiasmar aqueles que o virem em Paredes de Coura daqui por uns meses, até perceberem que o britânico é o gémeo perdido do Logos, dos Conjunto Corona.
E depois houve Arca. Quem não o viu no Primavera do Porto por ter ouvido dizer que iria (só) assistir a um DJ set, levou no ID_No Limits com o pacote completo: set, canto, dança, e uma performance artística, anárquica, e talvez incompreensível para quem não sabia com o que contar (como as tias de Cascais, nas filas da frente, que a dada altura o compararam a Conan Osiris).
Primeiro, um desfile e o lema: só há um tipo de bruxa. Ao mesmo tempo, o grito é processado e transformado em ruído. O pacote, adornado por cuequinhas alvas, também conta como percussão a dada altura; há poses, há flores mortas e pisadas nos ecrãs, há gente bonita e queer a assistir a tudo quase que de lágrima nos olhos, há quem abra a boca num esgar de um espanto divertido. E depois percebemos: o significado desta performance será aquele que nós quisermos, aquele que, pessoalmente, através das nossas experiências, boas e más e amorosas e assassinas lhe conferirmos.
Há uma leitura de The Dead Mother, de André Green (parece-nos). Há uma "versão" de Garbage. Há champanhe regado para cima do público. Há reggaeton, látex, poses entre o sexo e o terror. Há um beijo a Mykki Blanco e uma corrida para o fundo da sala, onde Arca sobe a uma plataforma para encher a sala com a sua voz e o seu carinho imenso, o mesmo que horas mais tarde, na Silent Disco, deu aos fãs. Há 15 minutos finais de festa com a "Hollywood" de Madonna. Há a certeza: isto foi, para muita gente, algo de muito essencial - aquele clic que às vezes falta para se perceber que não se está sozinho no mundo. Talvez alguém do mundo de Arca - que pertence a este mundo - possa explicar melhor o que se passou. Um tipo branco heterossexual com um hoodie de Burzum só pode agradecer por uma das melhores coisas que já viu.
Tanto, que os Little Dragon não iriam nunca superar aquela bomba que por ali explodiu com um concerto normal, mesmo que se tenham mostrado esforçados. Infelizmente, foram também inconsequentes, apesar do pianinho e do ritmo. Tivessem tocado antes e o caso mudaria de figura. O mesmo para Hunee, que ainda colocou algumas pessoas a mostrar os seus melhores moves em registo brasileiro. Que os limites nunca nos sejam impostos.
Observou-se isso mesmo durante a actuação / showcase dos Colónia Calúnia, que dentro do hip-hop tuga - seja lá isso o que for - são provavelmente o seu nome mais essencial, nos dias que correm. O colectivo parece fazer tudo de forma errada, i.e., fugindo às regras habituais do género, e o resultado não podia mais certo: graves apocalípticos, rimas carregadas de uma náusea Sartreana e urbana, beats abstractos e de cortar a pele à facada. É hip-hop para gente que gosta de sonhar com o fim do mundo, naturalmente. E quase mandou, literalmente, a casa abaixo; à medida que tocavam, minúsculos pedaços do tecto iam chovendo sobre as cabeças dos presentes dada a força do som. Que nunca encontrem a luz.
Já Madlib parece ter visto a luz: para que havia ele de se chatear se é comummente considerado como um dos melhores produtores da história do hip-hop? O norte-americano chegou, fez um DJ set para gente da velha guarda, carregado de temas da velha guarda, sem se aperceber que "a velha guarda" NÃO É NEM NUNCA DEVIA SER sinónimo de qualidade seja na música ou no futebol ou na política, foi abanando os braços perante um público mortiço que em outras situações - que é como quem diz, se o nome à sua frente não fosse "grande" - já se teria posto no caralho e desapareceu do palco tendo deixado atrás de si uma hora e meia de uma patetice pegada. Que isto sirva de lição: nunca tenham heróis.
Felizmente, IAMDDB foi, mesmo sem capa, a heroína que esta Gotham electrónica precisava. Nascida em Cascais e radicada no Reino Unido, a cantora e rapper recebeu uma enorme vaga de amor do público e respondeu a isso com uma actuação a roçar a perfeição, onde trap e R&B se foram cruzando, de forma enérgica. Extremamente importante, também: não se refugiou muito nas backtracks, coisa que tanto aborrecimento traz a quem gosta de ver concertos e não playback. Acabaria no meio do público, que afectuosamente dançou com ela. Não se sabe, no entanto, se este lhe terá dado os "charutos" que tanto pediu em palco. Entretanto, o cancelamento de Moullinex levou Xinobi a uma actuação surpresa noutra das salas, que tremeu com o poder do 4/4. E, no final, Pearson Sound fez o que pôde, mas não conseguiu arrancar gente a Shaka Lion...
Houve menos gente no Estoril no segundo dia do festival, talvez por ser sábado à noite e haver copos a beber, talvez porque a falta de um nome "histórico" tenha retirado o interesse a algumas pessoas, talvez porque nem todos têm disponibilidade para sair de Lisboa. Pouco importou isso para quem continuou a sentir-se maravilhado com o Centro de Congressos e com a sua acústica, desejando que este festival por aqui continue, e que outros festivais lhe sigam o exemplo.
Mas não foi por haver menos gente que não deixou de haver surpresas. Como os Meera, trio da Discotexas que foi até ali apresentar um pop/rock dançável construído à base de guitarras, teclados de onde provinham melodias house e uma bateria - e baterista - incansável. Presume-se que a banda não tenha lido o livro de Peter Hook sobre os New Order, em que este aconselha uma banda a nunca, mas nunca fazer de um/uma baterista também vocalista. Mas ela cumpriu, com distinção. Infelizmente, só foi possível aguentar vinte minutos de concerto após a insistência cansativa do teclista em ter o público mais próximo do palco.
Amigos músicos: não vos cabe a vocês nem a ninguém chamar pessoas para perto do palco. Se a música for boa o suficiente, o público entrará na onda. É escusado entrar por caminhos a roçar o fascismo hippie, filosofar que um concerto é um encontro de amor ou o caralho, ordenar quem pagou bilhete para vos ver a ocupar o lugar que vocês querem. A vossa função é tocar. Se ninguém dançou, paciência. Se ninguém levantou o cu da cadeira - e admite-se que os portugueses têm muito o hábito de ficar quietinhos em espectáculos que pedem mais emoção -, temos pena. Se há gente de braços cruzados, azar. Melhor sorte para a próxima. Só não nos fodam é a puta da cabeça entre cada tema. Por favor.
Até porque, à mesma hora, Kerox não precisou de recorrer a palhaçadas e choradinhos para pôr gente a dançar, mesmo que não fosse muita: bastou um acid sujo e uma electrónica altamente rítmica. O mesmo o fez Kamaal Williams, pouco depois, mesmo que tenha logo começado por dizer às pessoas que se levantassem (argh), antes de arrancar para um jazz/house de banda que irá, sem sombra de dúvida, entusiasmar aqueles que o virem em Paredes de Coura daqui por uns meses, até perceberem que o britânico é o gémeo perdido do Logos, dos Conjunto Corona.
E depois houve Arca. Quem não o viu no Primavera do Porto por ter ouvido dizer que iria (só) assistir a um DJ set, levou no ID_No Limits com o pacote completo: set, canto, dança, e uma performance artística, anárquica, e talvez incompreensível para quem não sabia com o que contar (como as tias de Cascais, nas filas da frente, que a dada altura o compararam a Conan Osiris).
Primeiro, um desfile e o lema: só há um tipo de bruxa. Ao mesmo tempo, o grito é processado e transformado em ruído. O pacote, adornado por cuequinhas alvas, também conta como percussão a dada altura; há poses, há flores mortas e pisadas nos ecrãs, há gente bonita e queer a assistir a tudo quase que de lágrima nos olhos, há quem abra a boca num esgar de um espanto divertido. E depois percebemos: o significado desta performance será aquele que nós quisermos, aquele que, pessoalmente, através das nossas experiências, boas e más e amorosas e assassinas lhe conferirmos.
Há uma leitura de The Dead Mother, de André Green (parece-nos). Há uma "versão" de Garbage. Há champanhe regado para cima do público. Há reggaeton, látex, poses entre o sexo e o terror. Há um beijo a Mykki Blanco e uma corrida para o fundo da sala, onde Arca sobe a uma plataforma para encher a sala com a sua voz e o seu carinho imenso, o mesmo que horas mais tarde, na Silent Disco, deu aos fãs. Há 15 minutos finais de festa com a "Hollywood" de Madonna. Há a certeza: isto foi, para muita gente, algo de muito essencial - aquele clic que às vezes falta para se perceber que não se está sozinho no mundo. Talvez alguém do mundo de Arca - que pertence a este mundo - possa explicar melhor o que se passou. Um tipo branco heterossexual com um hoodie de Burzum só pode agradecer por uma das melhores coisas que já viu.
Tanto, que os Little Dragon não iriam nunca superar aquela bomba que por ali explodiu com um concerto normal, mesmo que se tenham mostrado esforçados. Infelizmente, foram também inconsequentes, apesar do pianinho e do ritmo. Tivessem tocado antes e o caso mudaria de figura. O mesmo para Hunee, que ainda colocou algumas pessoas a mostrar os seus melhores moves em registo brasileiro. Que os limites nunca nos sejam impostos.
· 14 Abr 2019 · 23:17 ·
Paulo CecÃliopauloandrececilio@gmail.com
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