Super Bock em Stock
Avenida da Liberdade, Lisboa
23-24 Nov 2018
Dia Um

Faltam quinze minutos para o início do concerto e uma profunda sensação de terror e desânimo invade os corações de quem, desbravando caminho por entre o tempo invernoso, encontra um Coliseu dos Recreios praticamente vazio. Comenta-se isso mesmo com os amigos, com os colegas de profissão, com os músicos famosos que vamos encontrando aqui e acolá, gente que correspondeu à chamada mas que sonhava - como sonha qualquer fã à séria - não ter sido a única; gente que contava partilhar uma hora de emoções fortes com os outros, com a tribo, com os eleitos. Faltam quinze minutos e quase se chora: não veio mesmo ninguém ver Johnny Marr?

Certo; este é o festival no qual não é necessário estar sempre no mesmo sítio e onde a ideia de "cabeça de cartaz" é altamente sobrevalorizada. Aqueles que no papel pertenceriam objectivamente à Premier League podem ver-se ultrapassados por equipas de escalões secundários, sem que ninguém o estranhe; o Super Bock Em Stock tem por hábito funcionar muito à base do hype, onde os concertos de artistas em ascensão esgotam salas, e onde os concertos de artistas com créditos já firmados se arriscam a estar às moscas.

Poderia ter acontecido o mesmo naquele que foi o regresso do Homem que colocava nos Smiths as melodias que ainda hoje se cantam e soluçam, já que à mesma hora tanto Conan Osiris como Masego provocaram congestionamentos em outras salas da Avenida da Liberdade. Felizmente, o Coliseu foi-se compondo ao longo do espectáculo, mas ainda assim longe de estar cheio. E mesmo que tivesse sido melhor encontrar a loucura, fiquemo-nos pelo pretensiosismo - estavam lá os que interessam, e foram esses quem teve a honra de ver Johnny Marr chegar com poses rockstar (que é), e com "The Tracers", canção presente em Call The Comet, álbum a solo editado este ano.

Claro que quem lá estava não estava para o ver tocar canções novas; exigia-se ouvir as canções dos Smiths, todas elas ou apenas uma, tantas quantas ele as quisesse tocar, mesmo que diga que o passado já lá vai há muito. É um pouco como David Byrne, que em concertos não esquece (e de que maneira) os "seus" Talking Heads. O passado volta sempre para o assombrar, quer ele o queira quer não. E é por isso que o Coliseu, mesmo cheio de bolsas de vazio, quase que vaio abaixo quando logo à segunda se escuta "Bigmouth Strikes Again". E agora sentimo-nos como Joana D'Arc se sentiu, incinerados por aquela guitarra e aqueles riffs, tão cheios de vida que deles diríamos eternos.

Quem consultou o sempre amável Setlist.fm antes da sua chegada sabia que Marr ainda tinha mais uma mão cheia de canções dos Smiths para nos oferecer, mas no Super Bock Em Stock (seja porque era imperativo partir imediatamente para Zagreb [e quem caralhos lhe planeou um itinerário tão estranho quanto Madrid-Lisboa-Zagreb-Barcelona?], seja porque a própria organização já estava farta de o escutar) o seu tempo de antena foi bem mais curto - da habitual hora e meia, quase duas, para uma hora apenas (e sobraram dez minutos, anunciados, mas não concretizados) -, pelo que dessa banda que conseguiu ser melhor (e só não foi maior porque houve quem não o quisesse) que os Beatles só duas outras se ouviram: "How Soon Is Now?", aquele frémito ácido a pingar como o sol, e "There Is A Light That Never Goes Out", provavelmente a canção mais importante da história da humanidade. Os temas a solo? Soaram bem, não a Smiths, mas a algo de diferente, tornado mágico pela bagagem de Marr (e "Hi Hello", que para todos os efeitos podia ser uma canção dos Smiths, foi cortada igualmente do alinhamento). Numa noite em que tudo pareceu ter potencial para correr mal - menos tempo para tocar, pouca gente, tempo de merda, meterem-no entre o criptofascista do Manuel Fúria e os Capitão Fausto -, Johnny Marr foi Deus. Outra vez. Havia ateus?

Tão Deus que, logo a seguir e mesmo depois de uma sucessão de passadas largas de forma a absorver grande parte do concerto, Natalie Prass não conseguiu apaziguar nem um bocadinho o estado de excitação que se sentia. Ela bem tentou, naquela voz de toada jazzy com arranjos a condizer, perante um Seu Jorge bem composto, e até trouxe a artilharia pesada - essa magnífica canção clássico-contemporânea que dá pelo nome de "Bird Of Prey", por exemplo. Mas, infelizmente para a moça, ser um Anjo não é exactamente o mesmo que ser o seu patrão.

São os patrões quem mandam, mas foi Maria e Sensei D quem começaram por fazê-lo, para um set a meias durante o qual se escutaram batidas chill, remisturas de "Life's A Bitch", de Nas, "Loser", de Beck, "Clint Eastwood", dos Gorillaz, "Pump Up The Jam", dos Technotronic e um grupo de idiotas a pedir aos artistas para "puxarem mais". Seguir-se-iam Pedro Mafama, que quer queira quer não é exactamente igual a Conan Osiris, e Bejaflor, que tem em "Se Eu Ficar" uma espécie de êxito pop instantâneo (se alguém se dignasse a acreditar que putos com menos de vinte anos fazem melhor música que os dinossauros e trappers desta vida) mas que ainda precisa de algum calo no que toca a concertos ao vivo. A sala onde actuou, dotada de uma acústica terrível, não ajudou à festa.
· 05 Dez 2018 · 23:11 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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