Semibreve Festival 2018
Braga
26-28 Nov 2018
No mesmo fim-de-semana em que o Brasil decidiu (em itálico porque uma merda dessas não se decide, é imposta pela propaganda, pela mentira e pelo medo) virar na direcção do fascismo, o Semibreve optou por dar palco à liberdade - sobretudo à musical, à de criação, à electrónica, tecnológica, etc., etc., e levar até à cidade de Braga alguns dos nomes que mais têm feito por esse conceito, aplicado ao som. Porque - e isto é um importante porque - o som é também ele liberdade; podemos gravá-lo, replicá-lo, mas nunca prendê-lo. Tudo o que ouvimos no Semibreve, e neste pacote incluímos tanto a música como tudo ao seu redor - a respiração dos presentes, os aplausos, os assobios, as conversas com gente que não víamos há muito - nunca mais será replicado daquela exacta forma. É belo saber que assim o é.

Depois de um dia zero em que alguns optaram por rumar ao Porto para ver a tecnologia mui distinta de Atila e Author & Punisher, terminando essa noite a recuperar êxitos kizomba saudosistas apenas para quem teve a infelicidade de andar no secundário entre 2001 e 2004, chegou-se ao magnífico Theatro Circo para apanhar in loco o espectáculo em que os Telectu prometeram recuperar Belzebu, a sua segunda obra, navegando também por outros momentos da sua vasta discografia. Tendo António Duarte substituído o falecido Jorge Lima Barreto, os Telectu deram um concerto detestado por muitos e bastante elogiado por outros - e nós incluímo-nos neste último pacote. Mas, como não queremos ultrapassar o nível máximo do imbecilómetro, vamos só escrever que foi muito fixe, bale?

William Basinski era provavelmente o nome mais sonante de todo o cartaz, muito por causa da força que teve - e continua a ter - The Disintegration Loops, série de quatro álbuns que agora (porque já nos é possível olhar para eles como um passado) percebemos terem sido a banda-sonora de todo o colapso civilizacional que se seguiu ao 11 de Setembro, ou pelo menos o fim do sonho capitalista dos 80s e 90s. Infelizmente, o norte-americano não conseguiu transpor para o palco esse sentimento de entropia. Tudo o que ficou do seu espectáculo foi uma enorme sensação de aborrecimento, seja porque não existiu enquanto espectáculo (Basinski quieto em frente à mesa e as luzes alternando devagarinho não é propriamente apelativo aos olhos), seja porque os seus zumbidos sintetizados não são ao vivo e rodeados de gente tão interessantes quanto o são na mais profunda das solidões caseiras.

Actress teve a tarefa algo inglória de substituir Jlin, mas a verdade é esta: um festival que anuncia um cancelamento e consegue melhorar o seu cartaz com o anúncio do substituto não pode senão encontrar-se num patamar elevadíssimo. Em modo DJ set, o músico britânico foi fazendo dançar a black box do gnration, fosse através de um house sem luz ou de um techno abstracto, ou até mesmo de Pet Shop Boys (o que deixou radialistas bracarenses e DJs limianos entusiasmadíssimos). RP Boo fechou a noite ao mesmo nível quando já todos queriam estar a beber copos. Até porque havia que dormir cedo para acordar a tempo de curar a ressaca e apanhar Caterina Barbieri no Salão Medieval da UM, que a meio da tarde de sábado começou num eco sintetizado e depressa passou para o ácido cósmico, oscilando o corpo e a cabeça a cada onda sonora. Muitos foram os que fecharam os olhos procurando o transe, nas melodias ou no ruído destrutivo e teológico que debitou a italiana. O final só poderia ter um desfecho: a sala aplaudindo de pé.

Nessa noite, Sarah Davachi e Laetitia Morais começaram por mostrar um ruído ténue, que se aliava aos rituais, danças e estranhas acções do corpo que se iam visualizando no ecrã. Apontamentos, oferendas, proto-holocaustos animais, paisagens e rostos descoloridos e difusos em câmara lenta: de tudo houve um pouco no filme da dupla, que ajudou a descomprimir depois de um jantar bem servido. O chamado drone digestivo, portanto. Outros preferiam ter permanecido a comer durante a actuação de Grouper, provavelmente esquecendo-se de que tudo o que ela faz é poesia, mesmo que sopre tão baixinho ao microfone que seja praticamente impossível discernir as letras das suas sonhadoras canções. No Semibreve para apresentar Grid Of Points, o seu último álbum, Grouper subiu ao palco rodeada de uma escuridão quase absoluta e de um silêncio semelhante, apenas quebrado pelo que foi fazendo em palco e pela tosse alheia (toda uma Braga com catarro, impressionante). Liz Harris, que as milhentas igrejas desta cidade a abençoem, foi ela própria: um murmúrio flutuante, não no espaço, mas em algum lugar impossível de ser mensurado, nalgum destino menos palpável, na Califórnia dos desejos que mencionou a dada altura. A guitarra dá lugar a um piano melancólico e este ao ruído. O coração derreteu e prometeu ali voltar.

SØS Gunver Ryberg não passou aquela dos Police, mas encheu a black box com ritmos industriais aos quais se sucederam sintetizações várias, até chegar a um galope techno que agradou bastante a quem compareceu envergando um hoodie do Neopop. A sua performance energética atrás dos pratos colheu elogios e nem as paredes da sala ficaram indiferentes à pulsação. O mesmo para DJ Stingray, que entre ácido e techno fez suor cair na pista de dança. Foi o after possível, sendo que para domingo estava reservado o pós-after: o cling-clang metálico proposto por Keith Fullerton Whitman e Pierce Warnecke, com o preto, o branco e o cinza a dominar em palco sobre o noise, e os lasers de Robin Fox, manipulados em tempo real juntamente com o som. Para o ano a liberdade promete regressar. Oxalá.
· 20 Nov 2018 · 22:57 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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