Lisboa Dance Festival
Hub Criativo Beato
9-10 Mar 2018
Mal passa das 20h30 quando Lisboa começa a receber, novamente, com raios de chuva. Não de uma forma abençoada, mas possivelmente afastando potenciais festivaleiros, tendo em conta que ainda são muito poucos os presentes no Hub Criativo do Beato, onde se realizou a edição deste ano do Lisboa Dance Festival. O festival, dedicado às sonoridades mais electrónicas e dançáveis, mudou de casa para aquela que foi a sua terceira edição. Uma mudança que não parece ter sido a melhor; não só o Beato está mais longe dos principais meios de transporte (ainda que houvesse shuttles a fazer a viagem festival-Santa Apolónia-Cais do Sodré), como as condições para a realização do mesmo não se compararam, nem de longe, àquelas oferecidas pelo Lx Factory.

Eram poucos, por esta altura, e muito menos aqueles que entraram na Fábrica do Pão para assistir ao set de DJ Glue, que foi oscilando entre o hip-hop e o R&B com mais ou menos abanicos nas ancas. Abanicos esses que eram, invariavelmente, interrompidos para a selfie da praxe, porque hoje em dia ninguém gosta de música; gostam de happenings. De certeza que acabaram por receber dezenas de likes no Instagram, pela luz, pelo efeito bola de espelhos, pelo facto de serem jovens fixes e sintonizados. Cultura resumida a um .jpeg.

À chuva alia-se o vento, a barraquinha de madeira das bifanas e pães com chouriço parece que vai quebrar a dada altura (o que, a acontecer, seria a prova definitiva de que os porcos voam), e até se começa a achar que estes armazéns e fábricas degradadas pelo pulso do tempo têm o seu je ne sais quoi de charme, como se estivéssemos numa rave ilegal, ou no tempo áureo das raves ilegais, embora com o patrocínio de grandes marcas e definitivamente overpriced. É o capitalismo, estúpido. Aguenta-te à bomboca.

As salas, corroídas pela humidade, iluminadas por janelas inexistentes, foram-se enchendo progressivamente de música - a mesma música que convida ao hedonismo, às drogas, ao sexo; de rock n' roll, portanto. Um rock n' roll feito não com guitarras ou baterias, mas com computadores, drum machines e Abletons Lives. Ainda assim, rock: o espírito é o mesmo. O beat vai-se aproximando cada vez mais da nossa própria respiração. O coração bate depressa com cada subida nos BPMs.

Precisamos de ritmo para viver, e DJ Marfox tem-no aos magotes, entrando de rompante na Fábrica das Massas para apresentar um techno monstro, impossivelmente mais negro do que o techno original, proporcionando os primeiros grandes momentos de libertação na pista e de orgasmos auditivos. Não é à toa que ele tem sido uma das nossas principais exportações, e figura de proa nessa coisa a que alguns patetas chamam a "Nova Lisboa" - a Lisboa que sempre cá esteve, e que agora começa a ter mais visibilidade no estrangeiro (permitam-nos: se Marfox não tivesse aparecido nas Facts desta vida, ninguém falaria hoje em dia da "Nova Lisboa". É só uma ideia).

Seguiu-se NAO, cantora britânica que veio até ao Lisboa Dance Festival para apresentar os temas de For All We Know, o seu álbum de estreia, editado em 2016. Infelizmente, o som da Fábrica do Pão, tal como nas outras salas, não foi o melhor - para não dizer "péssimo", e também para não dizer "minha rica Altice Arena". Quem pagou só para ver a britânica (e havia bastante gente que o fez), cujo nome se pode pronunciar de inúmeras maneiras diferentes (ouviram-se para aí umas quatro), há-de ter saído do festival a sentir-se defraudado; a sua voz, que era o mais importante (porque é prenhe de soul, e é fantástica), mal se escutou sobre a banda que a acompanhou. Banda essa que parecia ter estudado bem o pop-funk de um Prince e que foi complemento indispensável à ginga de NAO em palco, que apesar de tudo manteve o público bem atento.

O techno poético de Miguel Torga (desculpem, não resistimos) não atraiu tanta gente quanto isso, mas Romare pareceu ter um bom público; a sua música é electrónica, mas ao vivo faz-se acompanhar por inúmeros outros instrumentos e músicos, conferindo um charme mais analógico a todo o processo, a fazer lembrar bandas como os Happy Mondays - não em termos de sonoridade, mas de cumprimento do plano: música de dança electrónica que não é bem música de dança electrónica. O seu house gostoso poderia - e deveria - ter sido complementado pelo de Leon Vynehall, um dos artistas que fechou a noite, e que não andou assim tanto por esses terrenos durante a hora em que o vimos. Foi pena.

No segundo dia, e após umas quantas talks de apologia ao capitalismo e à centralização, os Paraguaii sobem ao palco para tocar as canções de Dream About The Things You Never Do. Palco esse que mais parecia estar montado no fundo de um poço, já que tudo aquilo de que gostamos na sua música foi comido pela acústica do espaço. Se houver algo mais reduzido do que mediocridade (não vale "merda", avisem). Do outro lado, Prins Thomas conseguiu ir fazendo aquecer alguns corações, ele que é um dos nomes cimeiros de um género musical magnífico e inventado agora mesmo por nós: trve norwegian space techno. Sintetizadores rumo a Califórnias extraterrestres. Batidas como petróleo puro, alimentando o foguetão. E uma coolness invejável. Só é pena ter cá vindo em formato DJ set, e não live.

Foi esse, aliás, o principal problema (o segundo principal: o primeiro, claro, o som, e não, não nos calaremos com isto) do Lisboa Dance Festival: existia muita qualidade no cartaz, mas foi colocada demasiada ênfase no formato DJ set. A Leon Vynehall e Prins Thomas pedia-se que se apresentassem com os seus temas próprios, ou pelo menos que fizessem uma mistura das duas coisas - como Nosaj Thing, sem dúvida o grande vencedor desta noite e de todo o evento. O norte-americano veio para apresentar Parellels, editado em 2017, mas não se apresentou de facto - quer dizer, mal o vimos por entre o fumo e a pouca luz. Pouco importou; os seus beats tiveram o condão de nos fazer dançar, a espaços, e de nos manter quietos e atentos, noutros, prova de que seja o que for que ele faça será sempre mágico. Curioso é o facto de o momento mais mágico ter sido provocado por uma canção que não é dele: "Pink + White", de Frank Ocean, que colocou a tocar no PA após agradecer ao público e sair de palco. O público só deu à sola quando acabou de a cantar. Acabámos a noite na presença de Steffi, que preferiu dar ao público (e era muito, por esta altura) aquilo que este parecia querer: mais três horas de techno. Que saudades de um housezinho mais profundo.
· 14 Mar 2018 · 00:21 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com