SEMIBREVE FESTIVAL
Braga
27-20 Out 2017
Quando somos velhos e bêbados encanta-nos o som dos comboios sobre carris. O ímpeto aleatório da viagem. A liberdade que se espraia com a perspectiva de uma mão cheia de dias longe de tudo, longe do mundo. O rever de velhas amizades. A música ao vivo? Essa fica para segundo plano, porque quando somos velhos e bêbados também chegamos à conclusão de que, se calhar, odiamos ver música ao vivo. Porque se torna cada vez mais difícil encontrar um daqueles espectáculos capazes de nos deixar estarrecidos, pensando que a vida é boa se aquele momento viver para sempre. Mas isto é sobre o Semibreve - um festival que não se faz apenas e só da audição, mas também da visão e do tacto.

E "palpável" é um adjectivo que se poderia colar a muito daquilo que passou por esta edição do Semibreve - especialmente no caso dos artistas mais pesados, enegrecidos. Mas antes de ouvirmos o Theatro Circo a ranger, fomos nós quem rangeu os dentes durante dez minutos, não mais, dos Visible Cloaks. Dito em poucas palavras, isto da electrónica abstracta com visuais retro-futuristas em pseudo-homenagem a velhos sistemas Windows é muito divertido, mas há limites para o quão insuportável essa demência existencial pode ser. Ainda que a música se apresentasse, grosso modo, entre o analógico (pelo recurso a um instrumento de sopro não identificado) e o digital (o bom e velho laptop), com uma voz processada a acrescentar às camadas de som, tudo naquela dupla nos parece uma fusão de sons aleatórios e inconsequentes, como se tivéssemos posto os pés num elevador experimental e "Garota De Ipanema" fosse uma peça de William Burroughs. A ideia perde-se na confusão.

Mas foi para nos ajudar a limpar os ouvidos - e a alma - que existiu Gas, o moniker mais conhecido de Wolfgang Voigt, e também o mais influente. Foi por ele que nos deslocámos a Braga, e foi por causa dele que lamentámos essa ida a Braga já que, na manhã do primeiro dia de festival, alguém o confirma mais pertinho de casa. Enfim... Um lamento que, no entanto, depressa se transformou em júbilo; bastou vê-lo posicionar-se a um canto, escondido, de forma a que os visuais - visões de florestas negras, tenebrosas, como num filme black metal estridente - formassem grande parte da experiência (convém repetir isto) que é um set seu. Alicerçado em Narkopop, álbum que ditou o seu regresso ao nome Gas 17 anos depois, Voigt ajudou-nos a ir descobrindo a natureza com recurso a uma hipnose drone de batida minimalista, que progressivamente foi aumentando d volume até que todo o Theatro Circo se envolveu numa aura xamânica. Pensamos naquele verso dos GY!BE: like a daydream, or a fever. Encontramos ali o mesmo lamento pela morte da rave que em Burial. Temo-la como música destrutiva: da urbe, do ego. Foi enorme e nunca mais precisaremos de qualquer tipo de drogas no sangue.

Kyoka estreou-se em Portugal pela mão do Semibreve e alguém escreveu assim: «entra numa sala cheia - só que não - para mostrar as suas criações glitch. Na verdade terá aberto o MATLAB e deixado o Ableton a tocar enquanto fazia [imperceptível], Namaste OSS/10». Era electrónica apocalíptica e meteu uns breakbeats pelo meio. Mas foi mais interessante falar com um tipo romeno, que mora em Marrocos e sabia falar português, sobre os Negură Bunget. No dia seguinte, na Capela Imaculada do Seminário Menor, que só nos iluminará quando... isso, Steve Hauschildt mostrou, sob o olhar atento do Nazareno e do pároco de serviço, uma electrónica espacial e exploratória por vezes polvilhada com ritmo, perante uma audiência silenciosa. Excepto, claro, quando a "audiência" eram crianças a brincar naquele chão abençoado e a gritar choradeira por cima do ambient. Deixai vir a mim as criancinhas para que lhes pregue um par de estalos.

À mesma hora que um trio de ouro (ou de diamante, já que é de África que falamos) espalhava magia no Estádio do Bessa, uma dupla de chumbo denominada Fis rebentava com o Theatro Circo. Um drone pesadíssimo era pontuado por outras incursões noisísticas ao mesmo tempo que a água, a origem da vida, ia rebentando no ecrã. Por vezes demasiado masturbatório, outras parecendo a banda-sonora que a Fossa das Marianas já pedia, foi o melhor espectáculo que já ignorámos. Impossível fazê-lo em Deathprod: silêncio e fumo muito, electrónica que se evaporava no ar, uma manápula de sons "naturais" (água a correr, etc.) e um concerto-sonho em que tudo soou calmo, quase bucólico. Até que, para espanto geral, uma camada gigantesca de ruído industrial se abate sobre as cadeiras, na vitória final da máquina sobre o corpo. E, para espanto maior, após um período de silêncio em que uns quantos arriscaram o aplauso, Deathprod brinda-nos com noise fodido e luzes epilépticas. A conclusão: é um troll, e dos bons.

Enquanto uns conversavam com a armada britânica de jornalistas que se estreou em Portugal para cobrir o Semibreve, que não comeram cabidela ou francesinhas ou sarrabulho e que passaram a noite a beber whisky-cola como miúdas de 16 anos, outros clamavam por ritmo. E é essa a maior crítica que poderemos fazer à edição deste ano do Semibreve: a falta de algo que fosse diferente, ritmado, distinto do costumeiro ambient/drone/cenas. O meu reino por um pézinho de dança. Os Sabre ouviram e cumpriram, navegando por mares muito mais acid do que aqueles a que estávamos habituados por parte deles, e transformando a black box do gnration na pista de dança possível, onde o hedonismo alcoólico foi ditando as suas regras. Até que tudo acaba. Não só ali como na cidade inteira, onde 4h já é hora para se estar na caminha.

Lawrence English andou a passear-se pelo Semibreve inteiro durante o fim-de-semana, vestido de preto, como um Michael Gira cangalheiro - ele que também é fã dos Swans. No último dia, subiu ao palco do Theatro Circo para, primeiro, pedir um aplauso não só para o Semibreve como para Deathprod e, segundo, chamar gente do público para o acompanhar numa demanda noise que apelidou d «experiência corporal» e que visava, pelo que se percebeu, deixar-nos a pensar novamente nos incêndios que nos assolaram. Isso explica o fumo que foi saindo da máquina por ele responsável e que tantas gargantas irritou dentro daquela sala. E explica, também, o noise de emergência que ia subindo de tom. Infelizmente, o conceito acabou por estragar a experiência: um som tão fenomenal e punitivo não precisa de explicações ou metáforas pretensiosas. Basta existir.

Acompanhado por um violoncelista que soube aliar-se a cada momento sonoro, tanto os mais calmos como os mais tensos, Valgeir Sigurdsson terminou o Semibreve 2017 com chave de ouro, trazendo a Braga a banda-sonora de um filme que não passou no ecrã mas que soube deliciar os resistentes, entre a electrónica e um toque daquilo que entendemos por "música clássica". E foi belo, porque não se refugiou em artifícios de volume ou algo semelhante. "Limitou-se" a ser música. E deu para fechar os olhos e sentirmo-nos unos outra vez - como queremos que a música ao vivo o faça.
· 01 Nov 2017 · 08:57 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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