MIL - Lisbon International Music Network
Lisboa
1-2 Jun 2017
A vitória de Salvador Sobral no festival da Eurovisão parece ter feito o clique que faltava para que, de uma vez por todas, o público em geral se apercebesse de que Portugal vive um momento ímpar no que toca à sua própria produção musical. Claro que aqueles mais atentos - jornalistas, bloggers, radialistas ou meros melómanos cultivados - já o sabiam há muito; não é por Sobral que a música portuguesa passou a ser mais ou menos boa, mas será por ele que passará a ter uma maior visibilidade. Se não for por cá, sê-lo-à lá fora. O que faz falta, neste momento, é definir alguns conceitos - e essa definição não poderá, nunca, passar apenas pelos dinossauros e pelos nomes mais sonantes da "nova guarda", que num Prós e Contras recente se limitaram à participar num jogo da bolacha em directo, congratulando-se (e várias vezes sem mérito) pelo estado actual de coisas. Ponto primeiro: o que é a música portuguesa? Ponto segundo: o que significa isto da "internacionalização"?

Aquilo que entendemos por música portuguesa não poderá cingir-se ao elo mais fraco, isto é: música cantada em português ou com raízes tradicionais portuguesas. A música portuguesa é um híbrido de géneros e linguagens, tal como o seu povo; o rock Stoogiano que sai das garagens para o Musicbox não podem senão ser música portuguesa, assim como as guitarradas dos Dead Combo são música portuguesa, assim como a música de dança que explode da periferia para as grandes cidades são música portuguesa. Sobral não é um Salvador, é um elemento. E não é ele que irá espalhar a palavra nossa ou o New Portuguese Sound; isso já tem sido feito, ao longo dos últimos anos, por bandas que têm tocado "lá fora" como Xinobi, Black Bombaim, 10 000 Russos ou DJ Marfox, todos eles exemplos máximos da vitalidade de que se falava.

O que um festival como o MIL pode vir a fazer é ajudar estas bandas, que apesar da fraca exposição mediática têm feito muito mais pela "música portuguesa" do que aqueles que se assumem como figuras de proa do género, a singrar - ou pelo menos a poder ter essa oportunidade de singrar - lá fora. Ainda que o foco principal deste evento tenha sido os concertos, numa espécie de "celebração" da marca Portugal, algo que se pôde observar facilmente pelo facto de poucas pessoas, para além dos intervenientes principais, terem ido às muitas conferências que se organizaram. Essas discussões, que não podem partir só das bocas de alguns, devem existir e não só neste contexto festivaleiro. E o lado do business, que foi aqui bastante falado, não pode ficar nas mãos de um grupo de oligarcas que vê neste novo estado de alerta mais uma oportunidade para continuar a comer tudo e a não deixar nada. Falemos da música portuguesa e da possibilidade de expansão, sim: mas acabemos com os amiguismos primeiro.

Dito isto, eis um par de artistas que poderiam perfeitamente ter repercussão lá fora: os Lavoisier, dupla de voz e guitarra melancólica ao estilo Durutti Column-meets-fado, que voaram sobre um Tokyo bem composto (quase de forma literal, tal era a forma como a vocalista abria os braços), aliando palavras poéticas a melodias que não o eram menos, numa espécie de código morse. Foi deles que partiu o desejo: «é importante que se internacionalize, de uma vez por todas, a música portuguesa»... Mas isso já nós o sabíamos. E continuaremos a sabê-lo sempre que escutarmos mais canções como "Estátua", que partiu de um poema de Judith Teixeira para entrar em modo totalmente Adolfo Luxúria Canibal, rasgando o ar em fúria punk.

Os Galgo, que enchem o Sabotage com "Torre De Babel", logo a abrir, e que esta noite pareciam estar em modo speeds, em nada devem aos momentos mais dançáveis do pós-punk britânico; mesmo que o que mais se tenha retido do seu set tenha sido o choque e contrachoque entre ritmos e riffs, como que dizendo: estamos aqui, apostem em nós. Apostem nos Galgo da mesma forma que uma certa intelligentsia apostou em B Fachada, que no Musicbox mostrou o bom humor característico, tanto na prestação como nas próprias canções (e que foi aplaudido por um verdadeiro mar de groupies femininas, que não quiseram perder pitada do que se passou em palco). De "Joana Transmontana" a "Crus", com problemas no som, de "Não Pratico Habilidades" («roubada por um DJ francês») a "Deus, Pátria e Família", a pedido do público (com o que se foda Portugal a revelar-se estupidamente irónico num evento destes), a noite foi dele. A fechar, os Sensible Soccers pareciam algo cansados, mas não foi por isso que deixaram de fazer a festa com recurso ao seu krautpop.

No dia seguinte, os Quelle Dead Gazelle proporcionariam um bom momento punk rock quando o set é adiado por uns minutos por causa de uma mija, e depois foram dando chapadas sonoras aqui e ali aos que acorreram ao Roterdão, antes de um Jibóia em modo muito mais experimental fechar (para nós) o festival, acompanhado por bateria e saxofone. Só vimos uma meia dúzia de concertos, e cada um deles foi prova de que a "música portuguesa" se encontra bem e se recomenda. Já é assim há pelo menos dez anos. Vai continuar a ser assim por muitos mais. Resta saber se também o será assim onde interessa - no mundo, construindo o V Império Pessoano com o qual sonhamos enquanto nação. É que há trabalho e vontade, falta a coragem de os cumprir.
· 05 Jun 2017 · 23:17 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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