Amplifest 2015
Hard Club, Porto
19-20 Set 2015
Your roar of love / Slayed my despair / It ripped me from my path / That led me to nowhere

O homem inventou o tempo enquanto auxiliar de memória, sem nunca ter conseguido sequer conceber quanta matéria, quanta energia, quanta causa e efeito cabe nele. Inventou-o para que as palavras ressoem na distância; para que os seus poemas pudessem conter "antes" e "depois" e "durante"; para que uma simples reacção química (tudo aquilo que amamos) pudesse ser observada, estudada, e novamente perdida; inventou os anos para situar o seu desespero - um -, os dias para ruminar o seu destino - três -, e as fracções de segundo para determinar exactamente a maneira como o som impele a acção física - meia, testemunhada in loco quando nem meio acorde haviam os Converge tocado e já existia quem se atirasse de cima do palco, naquele que foi o primeiro de dezenas de lances dignos de nota artística. O homem inventou o tempo porque sabe que este pode parar, tal qual aconteceu naquele moshpit na sala um do Hard Club, à medida que os versos cuspidos por Jacob Bannon enchiam as entranhas de uma multidão que reencontrou, aqui dentro, o outro tempo, aquele que havia perdido. Miúdos e graúdos e tudo o que há entre estes. Fãs de longa data e recém-criados; transeuntes e jornalistas e distribuidores e organizadores e, em cima do palco, quatro relógios a bater com fúria.

It all reminds me / Just how callous and heartless the true cowards are / And I write this for the loveless

Há uma distância muito curta entre o amor e o ódio e também tem que ver com tempo - basta meia noite para que um se transforme no outro e vice-versa, basta uma cabeçada nas trombas do juízo e há uma vida que se perde. Basta que alguém caia redondo no chão enquanto cede à violência e dúzias de braços se esticam para o auxiliar, porque assim o ditam as leis do hardcore; basta que alguém cale um conjunto de ossos prestes a serem corroídos pelo cancro para que de dois caminhos exista apenas um - doravante carimbado como "o correcto" -, com um autocarro cheio de gente a puxar-nos lá para dentro e um bilhete marcado "desculpa" enquanto entrada para esse mundo novo. Mas os norte-americanos não se desculpam, prosseguem alheios às demandas do público e entregam-se totalmente a um set pré-fabricado onde existe "Jane Doe" e a partir de "Jane Doe" nada mais existe que "Jane Doe" (a repetição é essencial tanto na música como no texto; é assim que se pára o tempo).

Faster than light and faster than time / That's how memory works / At least in the dark where I'm searching for meaning

O significado para a vida é: não obstante tudo aquilo que tu faças e todos os sorrisos que vás mostrando enquanto os Converge te fazem feliz como há muito não o eras num concerto, haverá sempre alguém que te goza e te praga e te renega, alguém que se pavoneia de lado a outro mirando a vergonha, há sempre o palerma que atira água e cerveja e sabe-se lá o que mais enquanto uma família inteira entoa the rats will find a way (o seu único caminho é ser devorado pelo gato maior e mais forte ou então tombar com a doença) e tu apercebes-te, no meio daquele moshpit, que tudo o que poderias alguma vez fazer com a tua cabeça não tem significado nenhum no grande esquema das coisas e que por isso não há problema nenhum em seres mais sério ou menos sério. E quem to ensinou neste tempo inventado não foram apenas os Converge, mas também o dedilhar absurdo de bom de um guitarrista que vai pelo nome artístico Filho Da Mãe, sendo que todos nós o somos por vezes, tal como por vezes somos Charlie; e, tal como há pouco, no "caminho correcto", um tremendo Filho Da Mãe transforma o negrume das t-shirts e as estampas da rapariga morta num cenário apocalíptico do qual tu queres urgentemente sair mas não consegues, há uma gravidade que te prende àquelas cordas e que não te deixa respirar (com sorte dás uns gritos de satisfação, como alguém o fez, escondido pelas gentes).

Saw you slither around their necks / Sinking teeth into their flesh / Spitting venom seeing red

Pendurados nos pescoços e pelos pescoços surgiram, antes de tudo, os Full Of Hell, ou pelo menos é com esse nome que o Porto os deve tratar, tal como eles tão bem se apresentaram. Não vieram para deixar para trás o amor ou impelir à vitória dos ratos, mas para devolver em doses densas toda a agressão e adrenalina que receberam durante cerca de vinte minutos, que de acordo com o programa deveriam ter sido mais, mas não importa porque isto é grindcore, e assim sendo devem ter tocado, como manda o cliché, uma meia centena de canções nesse curto espaço de tempo (outra vez ele). Mais do que Noveller, que apesar de ter editado um belo disco este ano - Fantastic Planet - mais não pareceu, ao vivo, que uma mixórdia de loops e efeitos transaccionados entre guitarra eléctrica e ouvido alheio, e mais não foi do que "a gaja no cartaz" por oposição "àquela cena brutal que tocou antes dos Altar Of Plagues.

I need to know that there is trophy and meaning / To all that we lose and all we fight for

Antes que os Converge, nesse primeiro dia, arrebatassem por completo a nossa luz interior, existiram uns senhores vindos directamente da católica Irlanda para um concerto onde a luz de Cristo poderia bem ter tentado que não encontraria aqui uma brecha que fosse - black metal oferecido à carne como uma injecção de esteróides é oferecida ao músculo, chão e tecto abanando com a força do grito uno de "All Life Converges To Some Centre", a última oportunidade (quiçá) para se ver esta banda ao vivo e uma excelente maneira de iniciar o fim da vida do fim-de-semana e dos concertos, visto que o trio tornou pouco provável que alguém abandonasse a sala um sem vontade de partir a boca a alguém. Um pouco como o fizeram William Basinski - houve quem quisesse esbofetear o empregado do bar que a certa altura achou por bem picar gelo, enquanto a melodia frágil de "Cascade" ecoava pela sala dois como um sonho ébrio - e WIFE - por outro motivo igualmente válido: o projecto de James Kelly ser uma merda.

The dark horse will one day come / To free the light from all of us

Ninguém diria que Nate Hall assinaria um dos melhores concertos do Amplifest, munido de apenas uma guitarra e uma country de tom azul na ponta da sua língua, música intimista e intimidatória que apesar de ter sido apresentada perante consideravelmente menos pessoas do que aquilo que talvez mereceria teve o condão de nos limpar os ouvidos por uma pequena partícula de (adivinharam:) tempo. Se ele nos limpou os ouvidos, Atila limpou-nos os corpos, ele que renovou a imagem deixando cair dois dos "l" e a sonoridade que possuía, transformando-a num monstro-máquina que em nada deve ao techno mais agressivo e que levou bastantes fiéis das guitarras a reconsiderarem a sua existência, mediante a exposição de que foram alvo ao pulsar de toda uma engrenagem filosófica, coadjuvada pela geometria cardíaca que ia aparecendo em pano de fundo (as projecções, em conversas de circunstância pós-concerto, foram quase tão veneradas como a música em si).

No one will ever guide me / As I sail through the air / Now I just bring sadness / In those who choose to care

Foi no segundo dia do Amplifest (para quê quebrar o tempo?, respondo desde já a alguma pergunta que possa surgir acerca do formato deste texto) que se viveu a maior quota de miséria, até que apareceram os Metz e um renascido grunge pelas suas mãos, virtude de malhonas como "Acetate" ou "Wasted". Ou talvez não tenham aparecido os Metz mas sim André André, a colocar alguma justiça no resultado. Uma justiça que não existiu na enorme fila que se formou para ver Stephen O' Malley e o peso bruto dos seus amplificadores (a única coisa perceptível em cima daquele palco, para quem foi obrigado a ficar à porta), num concerto onde o músico bem tentou mostrar o mesmo serviço aterrador que mostra nos Sunn O))), falhando miseravelmente. Assim como falharam os Amenra, a banda que é uma Igreja ou o contrário, que não se apercebe do quão lastimoso é ser conhecido apenas por isso e cujo sludge arrelia a paciência de todos aqueles que não papam groupies (estes últimos, como é óbvio, adoraram, mas não terão adorado tanto o concerto quanto nós adorámos a notícia de que os Amenra deixarão de dar concertos).

You think you're a victim / But you live as a drunk

Todos nós vivemos como podemos, sem o tempo que os nossos antepassados inventaram. Vivemo-lo entre caminhos e olhares, entre presenças e distâncias; vivemo-lo nos festivais, nas conversas, nas cervejas, sem nunca pensarmos nele ou no que sobra dele. Vivemos vítimas ou heróis ou vilões. Em Cedofeita, Campanhã, Ribeira, Poveiros, Aliados, Dragão, Porto ou Gaia ou Aveiro ou Fátima ou Alverca. Vivemos bêbados porque temos medo que de um dia para o outro o fígado já não nos funcione e assim desaparecem toda uma série de boas memórias. Vivemos vítimas porque o somos - não pensámos nunca em sê-lo, e trocaríamos isso pelo heroísmo supracitado. E viveremos novamente todas estas interacções se, para o ano, encontrarmos finalmente um tempo que nos permita regressar ao Amplifest para de lá sairmos inchados de versos. Já que estamos a falar não de um festival mas de uma experiência. E agora que o texto chegou ao fim, está na hora de ir experimentar tudo outra vez.
· 27 Set 2015 · 19:49 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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