Jazz em Agosto 2015
Gulbenkian, Lisboa
31 de Julho a 9 de Agosto
Numa edição marcada pela presença grandes formações, o Jazz em Agosto arrancou com a actuação da Fire! Orchestra. Liderada pelo saxofonista Mats Gustaffson, a big band invulgar apresentou uma mescla de jazz, rock, groove e improvisação incendiária. Apesar do grupo ter trabalhado bem a coesão colectiva, e além do saxofone do líder Gustaffson (valeu a pena também assistir aos seus gestos entusiasmados na condução do grupo), destacaram-se ainda vários músicos, como Mette Rasmussen (saxofones), Mats Älenklint (trombone), Per-Åke Holmlander (tuba) e Julien Desprez (guitarra elétrica); e até mesmo as duas cantoras, Sofia Jernberg e Mariam Wallentim, souberam complementar-se, sem atropelos. Foi uma actuação altamente enérgica, abrindo o festival de jazz da Gulbenkian com uma música aberta ao mundo e ao nosso tempo.

Fire! Orchestra © Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

Gravado em 1968, o disco Jazz Composer’s Orchestra apresentou na época uma música inovadora, onde uma base de composição moderna (escrita e direcção de Michael Mantler) era interpretada por um conjunto all-star da vanguarda: Carla Bley, Cecil Taylor, Pharoah Sanders, Gato Barbieri, Don Cherry, Larry Coryell e Steve Lacy, entre muitos outros. A ideia de refazer esse disco poderia ser interessante, se tivesse partido da premissa que define o disco original, juntar alguns dos melhores músicos da actualidade - como fez, e bem, Charlie Haden, quando voltou a reunir a sua Liberation Music Orchestra. Infelizmente não foi isso que aconteceu no disco “Jazz Composer’s Update” (ECM, 2014) e também a actuação ao vivo na Gulbenkian acabaria por desiludir. A Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) foi convidada a preencher todo o recheio orquestral e cumpriu com distinção, voltando a mostrar porque motivo é considerada a melhor, mais versátil e eficiente big band nacional. Não foi por culpa da OJM que a música falhou, a sua intervenção colectiva cumpriu perfeitamente, o problema recaiu sobre os solistas convidados para a revisão do disco: Wolfgang Puschnig (saxofone alto, flauta), Harry Sokal (saxofones tenor e soprano), David Helbock (piano) e Bjarne Roupé (guitarra elétrica). Globalmente pouco interessantes, falharam na tarefa de incendiar o rastilho das composições de Mantler, houve vários espaços para os solos, mas estes nunca foram memoráveis. Estando ali ao lado músicos criativos como Sérgio Carolino, Gileno Santana, João Guimarães ou Demian Cabaud, teria sido preferível ter chamado esses músicos da orquestra a solar - estamos aqui no domínio da pura conjectura, mas imaginamos que muito provavelmente o resultado teria muito mais chama.

O primeiro fim-de-semana de música fechou com a actuação do quinteto Swedish Azz, projecto liderado por Mats Gustaffson e por Per-Åke Holmlander (tuba, que também integra a Fire! Orchestra). O grupo parte da era dourada do jazz sueco – a década de 1950 - para apresentar temas clássicos revistos com roupagens frescas e actuais. Bem apoiados por Kjell Nordeson (vibrafone), Erik Carlsson (bateria) e Dieb 13 (gira-discos, eletrónica), Gustaffson e Holmlander cumpriram o programa que estava anunciado, dando-se ao trabalho de contextualizar cada tema. Embora tenha soado globalmente agradável, com alguns bons momentos individuais, o concerto deixou no ar uma a ideia de incompletude, pelo facto da maioria do público não ter familiaridade com aquelas melodias clássicas que estavam a ser retalhadas e retrabalhadas.

RED Trio & John Butcher © Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

O festival regressou na noite de quarta-feira com a actuação do RED Trio com o convidado internacional John Butcher. O saxofonista inglês foi o primeiro convidado do trio português, tendo a parceria sido registada no disco Empire (2011). Vários anos passados, a parceria é retomada e desta vez a música soa menos a choque e confronto, como soou a primeira gravação, revela-se mais fluída. O entendimento do trio é perfeito, com a imaginação e o espaço democrático que o caracteriza. O saxofone tenor do inglês, pela sua força, conquistou rapidamente a atenção, mas o trio não se deixou abafar. A bateria nervosa de Gabriel Ferrandini, o contrabaixo frenético de Hernâni Faustino e o piano imprevisível de Rodrigo Pinheiro trabalharam uma música em permanente evolução, abrindo espaço para as intervenções preciosas de Butcher – impressionante sobretudo no saxofone soprano, chegando a imitar o som de pássaros.

Na noite de quinta-feira o trio Lok03 subiu ao auditório ao ar livre da Gulbenkian para acompanhar musicalmente a projecção dos filmes Symphonie Diagonale de Viking Eggeling (1921) e Berlin, Die Sinfonie der Großstadt de Walter Ruttman (1927). Num verdadeiro trabalho de família, os pianos dos veteranos Alexander von Schlippenbach e Aki Takase (marido e esposa), combinados com o giradisquismo de DJ Illvibe (filho de Schlippenbach), trabalharam um acompanhamento preciso das imagens que iam sendo projectadas. Os pianos iam lançando breves apontamentos, entrecortados pelos sons oriundos do gira-discos, sem nunca se fixarem num motivo por demasiado tempo, numa constante evolução. Apesar da originalidade da proposta, do sincronismo musica-imagem e da própria beleza dos filmes, o facto de a música estar limitada pelos filmes acabou por tolher a dinâmica e intensidade que se poderia prever de uma apresentação mais livre. A actuação terminou abruptamente por motivo técnico, mas o breve encore que se seguiu mostrou que, sem filmes, a música poderia ter ido bem mais longe.

The Young Mothers © Márcia Lessa / Fundação Calouste Gulbenkian

O contrabaixista Ingebrigt Håker Flaten já foi mais vezes ao Jazz em Agosto do que a maior parte dos lisboetas. Ao longo da última década o norueguês actuou no festival da Gulbenkian integrado nas bandas Atomic, Crimetime Orchestra e The Thing e, recentemente, apresentou o seu Chicago Sextet. Desta vez Håker Flaten trouxe o seu novo grupo, The Young Mothers, um quinteto americano que cruza estéticas. A acompanhar o contrabaixista subiram ao palco Jawwaad Taylor (voz, trompete), Jason Jackson (saxofones), Jonathan Horne (guitarra elétrica), Stefan González (vibrafone, bateria) e Frank Rosaly (bateria). O grupo desenvolve uma música que transcende géneros sem pedir licença, passa do jazz ao hip-hop, vai ao rock e desbunda improvisação enérgica. Cada músico dá algo seu a uma música que funciona no conjunto: o saxofone de Jackson é sólido e versátil; Taylor ora sola no trompete ora usa a voz num manifesto hip-hop; a guitarra de Horne lança faíscas; a bateria de Rosaly é uma força propulsora; e González ora pincela uma melodia no vibrafone com a elegância de Bobby Hutcherson, como poucos minutos depois poderá espancar a bateria com toda a violência enquanto emite grunhidos de black metal (em tronco nu, note-se). A música dos The Young Mothers é assim uma amálgama imprevisível, cruza universos e conquista o público sem demoras. A banda só abandonou o palco após muitos aplausos e dois encores. Inesperadamente, o quinteto apresentou uma das actuações mais inesquecíveis de todo o festival.

Apresentando o aplaudido disco The Great Lakes Suites, um dos grandes registos do ano passado, o veterano trompetista Wadada Leo Smith regressou ao auditório da Gulbenkian - tinha actuado em 2012 com o seu ensemble Organic. Ao seu lado estava outro histórico, o palhetista Henry Threadgill (saxofone alto, flauta). A estes juntou-se uma dupla rítmica muito sólida, com John Lindberg no contrabaixo e Marcus Gilmore na bateria (a substituir Jack DeJohnette, que tocou no disco). O baterista, neto do gigante Roy Haynes, não acusou a pressão e, bem acompanhado por Lindberg, forneceu a elaborada tapeçaria rítmica que sustentou a actuação do quarteto. As intervenções de Leo Smith, trompete sempre apontado ao chão, eram luminosas, mas colectivamente a música nunca chegou a descolar. Threadgill pareceu sempre perdido, a falhar mesmo os tempos de entrada, com intervenções pouco memoráveis, estranhamente alheado. Apenas no encore o quarteto pareceu mais liberto.

O festival fechou na noite de domingo com a actuação da francesa Orchestre National de Jazz, sob a direcção de Olivier Benoît. Reunindo jovens talentos como Théo Ceccaldi, Alexandra Grimal e Sophie Agnel, a orquestra encerrou um festival onde as grandes formações tiveram especial destaque. Apesar de algumas desilusões, o festival da Gulbenkian voltou a proporcionar um leque de propostas ricas e variadas, a reflectir a amplitude do jazz da actualidade. Para o ano há mais.
· 12 Ago 2015 · 00:59 ·
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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