Noite Fetra
Caixa Económica Operária
27- Dez 2014
Isto já todos nós sabíamos. Aquilo que faz mover a Cafetra não são as dezenas de boas críticas, as duas mãos cheias de artigos de jornais e as carradas de concertos que vão dando aqui e ali, mas sim a amizade que nutrem uns pelos outros, a irmandade que nutrem outros por uns, e se alguém de fora ouve, se alguém de fora gosta, tanto melhor - mas o principal é mesmo ter a família unida em torno de um só ideal: o de irem curtindo a vida sem stresses. A quarta Noite Fetra juntou-os a todos e a mais alguns companheiros de estrada e noitadas, numa mostra daquilo que a editora fez este ano e que fará ainda no futuro. A Cafetra é a verdadeira scene that celebrates itself, com o devido respeito aos shoegazers de antigamente.

© Rita Sousa Vieira

Entre as quatro da tarde e a uma da manhã, sem contar com os DJs, foram vários os concertos a que fomos assistindo na Caixa Económica Operária. Começando por Sallim, que tem vindo a dar os primeiros passos no mundo da música ao vivo, e que voltou a rubricar um óptimo set, semelhante ao que já havíamos assistido no Lounge há umas poucas semanas: canções fofas entre Vini Reilly e King Krule, pop de quarto para se ir mastigando com afinco. Logo depois a primeira surpresa: Lourenço Crespo a solo, apenas com um teclado, numa onda meio Amélie meio isto-é-o-que-sou-e-não-quero-saber, a dar o grande concerto da tarde, metendo motivs Kate Bushianos no final de canções e cantando, a voz embargada pela nonchalance, se eu quisesse era o Kanye West...

© Rita Sousa Vieira

Porque nesta família, independentemente do status que os outsiders lhes vão atribuindo, não existe ninguém que seja superior ao outro, tocam todos praticamente durante o mesmo tempo e tocam sem olhar a graus de importância. Daí que o Éme seja não o cabeça de cartaz que Último Siso, excelente disco editado este ano, lhe conferiria mas sim "apenas" mais um nome ali metido ao barulho. Munido só com uma guitarra eléctrica, conferiu a estas suas últimas canções um grau mais cru, mais puro, com o público a acompanhá-lo como podia; vozes ao alto cantando a letra de "Um Lugar", "Escolhe O Teu Veneno" e "Lisa". Seguir-se-lhe-ia Smiley Face, alternando entre guitarra e tropicalismo ukulele, acompanhado por uma caixa de ritmos improvisada e matando as saudades da "Mosca" - mas não as do "Senhor Óscar". A tarde ficaria encerrada com a actuação conjunta dos Go Suck A Fuck e Van Ayres, que com a sua electrónica ambiente e ocasionalmente ruidosa foram explorando o espaço - tanto este terreno como o celeste - da melhor maneira que conseguiram.

© Rita Sousa Vieira

Já a noite tinha tomado conta do céu quando Jejuno sobe ao palco da sala principal da Caixa Económica Operária para meia hora de drone electrónico, elevando-se entre meia cortina de fumo, com o objectivo principal de deixar os presentes em transe até entrar, mais perto do final, um ritmo mínimo. Se com ela as notas são poucas, com o trio formado por Pedro Sousa, Miguel Mira e Afonso Simões o caso muda de figura: sessão dura de expressividade free jazz, entre o bebop OnTheRoadiano e a liberdade sem literatura que indique quaisquer caminhos. O caminho é não existir caminho.

© Rita Sousa Vieira

Com as Putas Bêbadas reduzidas momentaneamente a trio, e a assinar um concertão digno de figurar nos anais da história e da surdez - para terem uma ideia, uma das malhas apresentadas ontem intitulava-se "Abras Sabbath" -, a Noite Fetra começava a chegar ao fim. Não sem antes reavivarmos todas as excelentes memórias que tínhamos das Pega Monstro, cujo segundo disco ainda não chegou ao mundo, mas que nesta noite foram dando um pequeno cheiro daquilo que está para vir. Problema: são as Pega Monstro, deviam tocar por mais duas horas ou mesmo até o sol raiar. Mas, crentes que somos, sabemos que no ano que vem, quando tiverem a oportunidade de nos injectar as canções novas no goto e tocar durante mais alguns minutos, voltaremos a sentir-nos salvos. Para já cerramos os dentes em sorriso aberto ao reouvir, após tanto tempo sem as ver ao vivo, as maravilhosas "Afta" e "Fetra". Se esta desilusão momentânea nos deixa ligeiramente abalados, o grande concerto dos convidados Tropa Macaca, entre o negrume em palco e as projecções acima de suas cabeças, numa dança estranha que tanto tem de industrial como de hipnagógico, deu-nos uma injecção de vitalidade. Ano que vem, voltaremos a vir cá dar carinho à Fetra.
· 31 Dez 2014 · 15:58 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com
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