Morrissey
Coliseu de Lisboa
06- Out 2014
Cinco horas da tarde. Ainda não são muitos os que ocupam o chão do Coliseu de Lisboa à espera que Steven Patrick Morrissey suba ao palco, para um concerto que já deveria ter acontecido há dois anos. Nessa altura, houve quem soubesse do cancelamento a meio de uma viagem entre Ponte de Lima e Lisboa e afogado as muitas mágoas no espectáculo que um tal de Bon Iver deu neste mesmo espaço, nessa noite. Hoje, seis de outubro de 2014, não havia Bon Iver. Havia sobretudo o medo: será que cancela outra vez? Será que o seu estado de saúde volta a titubear? Será que vai sentir o cheiro a frango assado que assola os Restauradores e recusar-se a actuar numa cidade tão bárbara?

 © Alexandre Antunes/Everything is New

Ainda não são muitos, mas já o vestem. Muitos da velha guarda, mas também bastantes caras jovens, tão jovens quanto o seria a velha guarda, quando descobriu pela primeira vez os poemas deste inglês com sangue irlandês. Morrissey é um herói para a vida: era-o nos Smiths, continua a sê-lo enquanto cantor a solo. Ainda que sejam as canções que escreveu na sua banda para o eternamente aquelas que continuam a povoar o imaginário de todos, aquelas que se requisitam por vício. Não é uma questão de ódio pela sua vida solitária - discos como Viva Hate, Vauxhall And I ou You Are The Quarry marcaram igualmente estas gerações e hão-de marcar muitas outras. É uma questão de saber que existe, na música do século XX, um Antes dos Smiths e um Depois dos Smiths. De saber que após a edição de "Hand In Glove" no longínquo 1983 nada seria o mesmo.

 © Alexandre Antunes/Everything is New

Quando os Smiths se dispersaram pela indústria, deixaram um enorme vazio que nem as sucessivas cópias e imitações souberam preencher. Mas ficaram as canções. Não houve um único ser humano, dentro de um Coliseu de Lisboa que não chegou a rebentar pelas costuras, que não tivesse pulado de júbilo quando Morrissey entra finalmente em palco, após meia hora de projecções de vídeos dos Ramones, New York Dolls e Charles Aznavour, e desata a correr por "The Queen Is Dead" afora, como se Manchester em 1986 estivesse ali ao virar da esquina. Plano de fundo: Isabel II a mandar-nos para o caralho, obra óbvia de photoshop pueril (não há grande graça a ser retirada das projecções que adornam as suas canções, convenhamos: não temos motivos para odiar a família real nem para deixar de comer carne só porque Morrissey nos mostra como são torturados e mortos os animaizinhos - quanto muito, até nos causou alguma fome).

 © Alexandre Antunes/Everything is New

Impecavelmente vestido de branco como um Tony Carreira se veste impecavelmente de branco, e acompanhado por uma banda que envergava t-shirts onde se escreveu "Fuck Harvest" - digamos orgulhosamente, apesar de acharmos que a banda se deve estar meio nas tintas para a disputa de Morrissey com a editora -, Morrissey começou por nos encher o corpo inteiro de um amor desmesurado pela sua voz, pela sua persona, pela sua obra. Continua com "Speedway", entrando já em terrenos a solo, e damos por nós a pensar que, muito provavelmente, iremos assistir ao concerto das nossas vidas. Puro engano nosso, porque Morrissey é Morrissey e não fará exactamente aquilo que queremos. De pronto se ouve "The Bullfighter Dies", canção retirada de World Peace Is None Of Your Business, o seu mais recente registo (e convenhamos que é um registo que até tem levado mais pancada do que aquilo que merece...), e por aí continuará quase até ao final. Canções que ainda precisam de amadurecer bastante, especialmente neste contexto. Precisam primeiro de se tornar história para que Morrissey as possa entoar. Daí que tenham falhado, daí que o concerto nos tenha desapontado; a banda bem tentou mas notou-se à distância a falta de entrosamento, a voz estava impecável, o público foi aplaudindo e rejubilando como pôde. Faltou-lhes o mais importante, que era uma alma.

 © Alexandre Antunes/Everything is New

Alguém grita we love you!, Morrissey riposta com um that doesn't matter!. E de facto não importa absolutamente nada, tal como a paz mundial. Importa que "Neal Cassidy Drops Dead", que até é uma cançoneta engraçada, é apresentada com tão pouco sal que nem dá para esboçarmos um sorriso. Houve uns quantos quando começa "Trouble Loves Me", canção com selo de 1997, após um breve interlúdio ao piano. Ainda uns outros com a prestação quase cinco-estrelas de "I'm Not A Man", marcha imperial arrancada a este último álbum. Mas os sorrisos maiores - aqueles que vêm do âmago, aqueles que surgem não por condescendência, ironia ou nervosismo, mas por pura e clara demonstração de felicidade interior - acontecem quando "Hand In Glove" ressoa não pelo Coliseu mas por toda a cidade. Magnífico. Se houvera uma altura para lacrimejar teria sido esta. Mas eis que após incitar ao vandalismo dos McDonald's e demais painéis publicitários espalhados por Lisboa, aparece "Meat Is Murder", acompanhada das supracitadas projecções. Levar com tamanha demonstração de propaganda política é sinónimo de sono, mas acompanha-a uma bonita canção dos Smiths, por isso perdoemos-lhe o gosto-fetiche em não se cansar de nos mostrar como a comida que comemos nos chega às mesas. Perdoemos-lhe não só por ser Morrissey, por ser herói, por ser um esquecido Prémio Nobel da Literatura. Perdoemos-lhe,

porque,

no encore

quando já nos desdobrávamos em maledicências e desilusões várias

...eis que surge, em todo o seu esplendor emotivo, em toda a sua melodia ao piano, o choque frontal que é "Asleep" - muito mais que quaisquer imagens ou gestos ou ditames revolucionários. É "Asleep", das canções mais belíssimas dos Smiths, a canção que valeria bem o preço exorbitante dos bilhetes para este espectáculo. É "Asleep", canção sobre a morte ou sobre o amor ou sobre ambas as coisas, canção para querer sair de nós e partir para onde não exista "nós" ou onde nunca tenha existido "nós" - canção para chorar, como houve quem o fizesse. Canção para nos lembrarmos da versão que alguém que, há algum tempo, nos mandou uma versão, porque às vezes lhe pedimos que nos cante ao ouvido, porque amamos essa voz como amamos a voz de Morrissey. Canção para nos lembrarmos que, há algum tempo, existiu outro "alguém", que se extingue durante os pouco mais de dois minutos que dura "Asleep". Canção que podia ter encerrado o concerto logo ali, mas ainda haveria "First Of The Gang To Die" para enlouquecer ainda mais as hostes, de uma forma que ainda poderiam ser enlouquecidas após terem levado com hora e pouco de aquecimento por parte de Morrissey para a digressão europeia que aí vem.

 © Alexandre Antunes/Everything is New

Num concerto que dividiu e muito as opiniões - entre o êxtase e a tristeza e pouco meio termo - valeram os Smiths, a banda cuja luz nunca se apagará porque já faz parte de um determinado imaginário colectivo. Valeu "The Queen Is Dead", valeu "Hand In Glove", valeu "Meat Is Murder" e valeu sobretudo o monstro que é "Asleep". Mas valeu também ter Morrissey, ali à nossa frente, quase intocável ("quase" porque houve quem tivesse levado um pedaço da sua camisa para casa), figura que se inscreve no nosso sangue e nos nossos dedos e nas nossas palavras. Aconteceu Morrissey. E isso, só por si, já é mais do que suficiente.
· 08 Out 2014 · 00:08 ·
Paulo CecĂ­lio
pauloandrececilio@gmail.com
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