OUT.FEST 2014
Barreiro
03-04 Out 2014
Faust © Vera Marmelo

Primeiro um lamento: oh p### da ubiquidade. Ou a falta de omnipresença. A simples humanidade de ter perdido na quinta-feira no Be Jazz Cafe, Norberto Lobo primeiro, Peter Brotzmann e Steve Noble depois, continuando pela sexta-feira fora, uma Master Class com Peter Evans na Escola de Jazz do Barreiro, mais o concerto workshop da Carla Bozulich no sábado e de volta ao Be Jazz Cafe (porra não fui aí uma única vez), Open Mind Ensemble e Rodrigo Amado Wire Quartet. E como dizia o Carlos Cruz no 1,2,3, e ainda... No domingo não deu para ir ver o enorme Charles Cohen e Rabih Beaini, imagine-se, no Convento da Madre de Deus da Verderena. Aqui a minha única vingança será estar para chegar-me às mãos, proximamente, uma caixinha do Charles – A Retrospective of Early Works – valha-me Deus. Mas no deve e no haver, basta ter ido a um concerto para sentir que ganhei algo, aliás muito.

SEXTA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO

Felizmente ainda deu para ver muita coisa. A começar na sexta. Num local absolutamente fantástico, ali no meio da histórica CUF, entre bairros de operários onde ainda vive gente, entramos numa casa assombrada de memórias de 1974, ecos de tanta coisa que se deve ter passado por ali faziam-se sentir na pele. Eis o cine-teatro da CUF, hoje Casa da Cultura, eis Peter Evans Quintet.

Peter Evans © Vera Marmelo

A acompanhar o norte-americano, em vez de Carlos Homs ao piano, veio Ron Stabinsky, de resto o quinteto integral para um concerto quintessencial. Suportado pelo seu fabuloso Ghosts entre outro material de primeira apanha, trouxe-nos montanha-russas Wagnerianas de emoções, entre a calmaria Jon Hassélica e o devaneio free total, com músicos fabulosos à altura uns dos outros – grande funky-heavy-metálico Jim Black na bateria! – duetos de trompete e seres vivos electrónicos (cortesia do excelente Sam Pluta). Peter Evans, um senhor, entre senhores.

Fennesz © Vera Marmelo

Intervalo a pensar como poderia Fennesz superar toda aquela viagem, pouco depois das 23 e 30 começa o austríaco. Com uma arma letal na bagagem: o óptimo, óptimo Bécs. Sem ter nada a ver, as montanhas de ruído delicodoce, aquele tom de instrumental de My Bloody Valentine extendido pela eternidade, aquele sentimento de “parece mesmo que anda picado com o Tim Hecker disco a disco”, resultaram em pleno. Soube foi a pouco. Porque o foi mesmo, curtinha a sua actuação, que não passou a meia hora. Foi como mergulhar de cabeça num CD, a cadeira do cine-teatro fez play e depois fez stop.

Dean Blunt © Vera Marmelo

Intervalo a pensar como poderia Dean Blunt superar aquelas duas viagens, pouco depois da meia-noite, blackout total. Luzes apagadas, cabras-cegas mentais com um acender de isqueiro ali e acolá no palco, um “parece que está ali alguém”, “agora parece que está ali do outro lado”. Som de água a correr, piano. Luz ténue, e surge um senhor que parece um guarda-costas de um clube qualquer. Mas não é um clube qualquer, é a elite da música britânica, um adereço humano de um mago performer que já tinha encantado há meses o Maria Matos. Ao contrário do seu guarda-costas cénico, Dean tem aspecto de “Faithless”, magro, boné Nike, cheiro a erva do charro que só podia ser dele – cheiro a erva na CUF parecia mesmo 1974!. Mas graças a Dean Blunt parecia mesmo era 2014. Entre The Redeemer, um dos discos do ano passado, e o seu novo que está para sair, Dean, com o “bouncer que nunca se mexeu um centímetro”, a miúda dos coros, ópera e guitarra etérea, e o saxofonista que devia ser o “men” que estava no escuro mesmo ao pé de nós, deu-nos uma espectáculo para mais tarde recordar, a contar desde as primeiras horas de sábado até sempre. Ainda houve a escuridão a tomar conta da sala de novo, mas desta vez com holofotes OVNI a piscar na cara, mesmo no momento em que eu sonhava que via os A R Kane ao vivo com o Tricky. É toda uma dificuldade de o classificar que o torna maravilhosamente inclassificável, trip hop com saxofone, shoegazer com hip hop, ópera com funk, mescla sonora escura e ao mesmo tempo iluminada, de qualidades hipnóticas tais, que quando se fez luz de novo na sala e já não havia ninguém no palco, parecia-me que tinha passado a vida inteira ali num flash.
· 07 Out 2014 · 23:56 ·
Nuno Leal
nunleal@gmail.com

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