Vodafone Paredes de Coura
Paredes de Coura
19-22 Ago 2014
Semana Zero

A edição de 2014 do festival com a maior carga mítica do país não começou com o concerto de Capicua. Começou muito antes, ainda alguns jovens iam a caminho de Moledo, e durou quase uma semana inteira, sendo que a vila minhota foi acolhendo no seu seio espectáculos da mais variada estirpe que iam aquecendo os ânimos daqueles que se deslocaram até ao norte mais cedo do que é humanamente possível. O festival sobe à vila, diziam-nos da organização, e realmente subiu: no nosso caso não foi possível assistir ao espectáculo Chão, dos Mão Morta + Comédias do Minho, mas ficaram na retina os DJ sets de Moullinex e Xinobi, o pós-rock dos First Breath After Coma, um megafone e um set improvisado de alguns membros dos Gin Party Soundsystem (ali homenageando o agora tristíssimo Tony Carreira), o banho gelado de dois alcoólatras que depois invadiram a sala de imprensa e uma enorme, e salutar, camaradagem entre todos os presentes. Fossem todas as semanas assim, mas nenhuma semana é assim como em Paredes de Coura.

Dia Um

Apetecia gritar que se f*** a Capicua que nós temos Rúben Neves, ainda para mais porque se é forçado a perder o concerto da rapper portuense em detrimento da primeira mão da nova aventura europeia do Melhor Clube do Mundo, mas deixemos isso de parte (até porque estamos a brincar e esperemos que ela não nos leve a mal) e foquemos-nos naqueles que foram os primeiros concertos "à séria" que se viram por aqui. Os Cage The Elephant, que subiram ao palco ao princípio da noite, não foram, contudo, um deles: rock chato e desinteressante, chapado a tantas coisas (Pixies? Beck? Black Keys? A "Seven Nation Army"?) e a soar a coisíssima nenhuma, que ainda assim deixou em polvorosa os já muitos que se iam aglomerando no declive. Ganharam certamente a audiência, mas perderam no que toca à música.

Janelle Monáe é um mulherão, e não o dizemos com qualquer conotação sexista: a voz da norte-americana carrega consigo toda uma antiga geração soul e, aliada à secção instrumental, faz-nos mexer, saltar, agitar os braços onduladamente. Pelo menos no que ao seu fantástico registo de estreia, The ArchAndroid, diz respeito; em Coura optou por uma setlist mais ligada ao seu segundo disco, The Electric Lady, que acaba por não aquecer e, até, arrefece bastante os ânimos que originalmente se tinham, ânimos que nem uma versão de "I Feel Good" conseguiu restabelecer. Desilusão certa; esperava-se muito mais. Os desconhecidos Public Service Broadcasting acabaram por fechar a noite ao ritmo kraut naquela que foi uma boa surpresa, patrocinada pela Vodafone e por Paredes de Coura.

Dia Dois

Se Fast Eddie Nelson contém nas suas fileiras o melhor baterista do mundo, e descarrega uma belíssima sessão de rock n' roll sujo e bluesy que sabe mesmo muito bem quando começa o fim da tarde, Seasick Steve é ele próprio sujo e bluesy e, pasme-se, entusiasma uma multidão inteira que acorre à frente do palco para, pasme-se ainda mais, sessões ininterruptas de crowdsurfing e uma boa dose de pancadaria juvenil. O segundo dia do festival foi inteiramente dele, não se sabendo é se a rapariga que escolheu para subir ao palco foi dele durante a noite. Alguém que lhe pergunte para que se faça capa do BodyspaceVidas.

Mac DeMarco era um dos nomes mais aguardados desta nova edição do festival e acabou por dar um concerto agradável, apoiado no seu mais recente disco, Salad Days, editado este ano. O norte-americano foi conquistando pontos ao sabor das suas notáveis canções salientando-se aquela que mais sobressai destes dias, "Chamber Of Reflection", sintetizadores soft com toada muito eighties que se afigura como um dos malhões do verão e do ano. Por falar em canções notáveis, são algo que os Chvrches não têm de todo: pasmaceira electro-dançável que só interessa porque nos queremos casar com a vocalista. E, não sendo necessariamente "canções", a ginga garage punk feita a pensar na porrada dos Thee Oh Sees fez-nos acreditar num mundo melhor e dominado pelas guitarras (I, for one, welcome our new six-string overlords).

É inegável que muitos dos festivaleiros tinham acorrido ao Minho para ver ou rever os Franz Ferdinand, seja por gostarem realmente dos escoceses ou para provar à comunidade científica que sim, viajar para trás no tempo é possível. Felizmente, temas como "Dark Of The Matinée", "Do You Want To", "Auf Achse" (gigante!), "Take Me Out" ou "This Fire" continuam a soar tão bem hoje como há dez anos atrás, ainda não se sabia muito bem o que era essa coisa chamada indie. Infelizmente, assistir a um concerto dos Franz Ferdinand em 2014 é sinónimo de assistir a um concerto de uns quaisquer dinossauros do rock, e os Rolling Stones são muito mais divindade do que o quarteto de Glasgow...

Dia Três

Muito dão os "putos" (este epíteto, semi-horrível, ouviu-se sobremaneira aqui e ali sempre que se falou dos barcelenses) dos Killimanjaro; rock bruto, pleno de bons riffs e apoiado na figura que é José Roberto Gomes, ele a quem um dia hão-de erguer uma estátua. O mote foi Hook, belo disco editado este ano e que tanto bom headbang patrocina, como se comprova pelo simples facto de que já muitos sabem a letra da Sabbathiana "New Tricks, Old Dog". Os Linda Martini continuam iguais a si próprios, havendo criado também eles um culto inteiro à sua volta, que canções como "Juventude Sónica" ou "Estuque" teimam em não dissipar. O concerto dos lisboetas em Coura fica, contudo, marcado pela aparição da avassaladora "Lição De Voo Nº1" (melhor coisa que já fizeram?) e pelo grito imberbe e imbecil de mão direita é penalty: não façam deles uma banda para as queimas, por amor da santa.

Nem vale a pena ligar alguma à segunda versão dos Yuck: dez segundos de uma versão tão mal amanhada desse malhão fantástico que era "Get Away" bastaram para a banda morrer sem apelo nem agravo - vão certamente desaparecer do mapa como desapareceram os Klaxons, e é pena. Quanto a Coner Oberst, já ouvimos ressonares mais animados, mas seja como for os Bright Eyes nunca foram a nossa praia e depois de algum chapadão rock não nos apetece mesmo nada cair na chonice.

Salvaram-nos os Black Lips, a trazer a festa punk para Paredes de Coura e, novamente, a convidar à viagem por cima, por baixo, pelo meio do público - o que melhor servir. Concerto intenso, tão intenso que houve quem não resistisse e saísse do pit de maca. Os Cut Copy, que já haviam estado pelo recinto dois dias antes em formato DJ set, acabaram por apresentar um espectáculo morno que ainda assim convidou ao êxtase durante "Take Me Over" e "Hearts On Fire".

Dia Quatro

Chega ao fim Paredes de Coura com aquele que seria, sem dúvida, o dia mais apelativo do cartaz, muito por culpa de um certo britânico com ar fofinho que encheu mesmo o recinto. O mote foi dado com a bonita Sequin, que ainda não nos cansou, mas cresceu exponencialmente com os Sensible Soccers, que nos cansaram ainda menos: "Sofrendo Por Você" continua a ser essa canção inacreditável que nos faz dançar ou chorar em quantidades exactas, porque toca fundo nessa coisa chamada coração. Não obstante, ainda conta com a presença obrigatória de Ricardo Bueno e sua incomparável performance artística. E ainda dá para correr até lá abaixo e gritar Né, o Jackson já marcou, caralho!.

Kurt Vile é um chatinho de primeira, os Growlers não lhe ficam atrás, mas vamos certamente levar na cabeça por elogiar Beirut e falar mal dos outros dois. Lidem com isso. A folk de tons balcânicos soa maravilhosa tanto em disco e ao vivo, e a julgar pela recepção do público a "Elephant Gun" Zach Condon ainda terá muito para nos dar antes que se torne obsoleto. Como é que algo tão calmo e tão doce no meio do barulhinho bom pode ser tão fascinante?

E eis que surge James Blake, penteado aprumado e ar de quem preferia estar em casa a compor singles sob o moniker Harmonimix, que regressa ao país onde tem sido incrivelmente feliz para uma actuação em modo best of: "CMYK" logo a abrir, "I Never Learnt To Share" de seguida e "Limit To Your Love" pouco depois, passando ainda por "The Wilhelm Scream" e por temas mais recentes como "Overgrown". E uma multidão assistindo serenamente, sem grandes laivos de entusiasmo, mas seja como for Blake será sempre, toque onde tocar, um intimista; as suas canções falam não à garganta mas ao peito, falam não ao crime e à acusação mas ao arrependimento e ao perdão. E esse peito é onde as traremos sempre, tal como a Coura. Para o ano há mais.
· 07 Set 2014 · 12:54 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com