Optimus Primavera Sound 2013
Parque da Cidade, Porto
30 Mai a 1 Jun
E de repente lá estávamos todos de novo naquele gigante prado dos prazeres que nos havia dado tanto em 2012. Pelo segundo ano consecutivo celebrou-se Primavera no Parque da Cidade do Porto com aquele que é seguramente um dos melhores festivais do mundo. Passado um ano voltou tudo ao início. 3, 2, 1. Ao primeiro dia não se podia chamar de warm up, tal o impacto dos cabeças de cartaz. Mas já lá vamos.

Ainda não eram oito da noite quando os Wild Nothing começaram a mostrar as suas canções ligeiramente revivalistas, muitas vezes irresistíveis. Pode ser um tudo ou nada light mas a banda e Jack Tatum sabe muito bem o que fazer com as guitarras e com o legado musical dos anos 80. Por falar em anos 80, as Breeders, que nasceram bem no início dos anos 90, foram ao Optimus Primavera Sound fazer algo que não se vê todos os dias: tocar um disco do início ao fim. Praticamente vinte anos depois do seu lançamento, Last Slash, reeditado em Maio passado, satisfez ânsias revivalistas e mostrou que, como é costume dizer-se, quem sabe nunca esquece. Foi bonito ouvir a banda de Kim Deal pegar em canções como “Cannonball” e “Divine hammer” e fazer essa viagem com elas - ainda que seja apenas uma viagem ao passado.

Por falar em viagem, mesmo ali ao lado os Dead Can Dance preparavam-se para percorrer a sua longa e icónica discografia num cenário que se previa difícil. A música da banda de Lisa Gerrard e Brendan Perry corria sérios riscos de não sobreviver no contexto de um festival (apesar do Primavera Sound não ser um festival qualquer). Corriam ainda os riscos de soar datados (os seus discos têm aquela capacidade de definir um espaço e um tempo). Mas felizmente não aconteceu nenhuma dessas coisas. Com um som bem “fresco”, mais “world” do que se poderia prever, os Dead Can Dance deram uma lição acerca da arte de envelhecer. Palavras chave: música grega, instrumentos tradicionais, percussão, a voz de Brendan Perry, o etéreo. Bonito. Até deu para ouvir uma belíssima versão de “Song to the siren” antes das cortinas finalmente fecharem.

Durou apenas uma hora – pouco mais – mas o concerto de Nick Cave & the Bad Seeds ficou a pairar no ar durante horas. Começou com um par de canções do novo disco, mas depois engatou no passado. “From her to eternity”, “The Weeping song”, “Tupelo”, “The Mercy seat”, “Stagger Lee”. Tudo entregue em mãos com a intensidade que é conhecida a Nick Cave. Sem pausas para respirar, sem desviar o olhar para a condição humana, sem os habituais tiques e manias do rock. E depois ainda há o campeonato à parte que é Warren Ellis, que consegue ser mais ruidoso com um violino do que a maior parte dos guitarristas. E depois aquela força de mil cavalos dos Bad Seeds, a levar tudo à frente. Menos a voz de Nick Cave. Curto e grosso. Claro que podia ter durado mais uma hora; mas foi impressionante mesmo assim.

Antes de fechar a noite havia ainda duas propostas muito diferentes para absorver: a bizarria de guitarras dos Deerhunter, que deram um concerto raramente entusiasmante (parece que são sempre melhores em disco do que em cima de um palco), e a electrónica emocional (uau) de James Blake que acabou por surpreender quem não ouve nos seus discos, ao contrário do que acontecia nos EPs, mais do que o repetir de uma fórmula de sucesso. Ao vivo, com um baterista e um guitarrista, a música de James Blake revelou-se incomparavelmente mais física, mais intensa, mais essencial. Talvez seja esse o seu fado: revelar-se ao vivo. Não faltou naturalmente no alinhamento canções como “Limit to your love” ou “Overgrown” nem a “velhinha” e intensa “CMYK”. Na verdade não faltou quase nada; mesmo para quem, repita-se, não consegue ver grande sucesso nos dois discos que James Blake editou nos últimos anos.

E depois chegou o dia em que foi preciso começar a fazer escolhas. Aquele dia temível em que é preciso escolher entre a mãe e o pai, a Zooey Deschanel e a Natalie Portman, o melhor discos dos Led Zeppelin. Um dia difícil. Mas teve de ser. Depois de duas canções dos Local Natives, que soaram eficazes e até interessantes, foi tempo de ir ver o inevitável Daniel Johnston no Palco ATP mostrar pedaços de uma carreira singular. O seu concerto foi como é a sua vida, a sua música, a sua obra: caótica. No bom sentido. No melhor sentido. É óbvio que nem tudo são rosas neste cenário, mas as canções de Daniel Johnston continuam a valer a experiência, mesmo que às vezes dolorosa, de perceber ao vivo quão problemática é a sua existência.

Os Swans foram iguais a si mesmo; uma tareia de ruído, um coito sónico de dimensões suficientemente grandes para gerar algumas clareiras na plateia. É, exactamente por esse motivo, uma daquelas propostas que justificam a missão quase “pedagógica” de um festival como o Primavera Sound: levar músicas menos imediatas a um público amplo e muitas vezes à descoberta de novas experiências sonoras, mesmo que proporcionadas por uma banda que já anda nisto há décadas. Foi, como seria de esperar, um concerto impróprio para estômagos frágeis patrocinado por Michael Gira.

Pouco depois era o momento de perceber afinal se Melody's Echo Chamber era apenas uma miragem e se o belo disco que lançou em 2012 resulta tão bem ao vivo como poderíamos esperar. A verdade é que sim. Para surpresa de muitos, até do que assina este texto, a pop levemente psicadélica de Melody Prochet foi responsável por um dos melhores concertos do OPS 2013. Se ainda se diz por aí que estas canções não são mais do que uma versão feminina de Tame Impala é certamente por falta de informação. Depois da magia que Melody Prochet deixou no ar foi tempo de ver os Grizzly Bear fazerem o mesmo com um conjunto de canções que muito têm ajudado a elevar a pop em termos da capacidade para sonhar. Pode-se mesmo dizer que durante umas duas horas e qualquer coisa o recinto do OPS 2013 foi invadido pela fantasia. E que bom que foi.

Da fantasia ao suor foi um instante. Isto porque no palco Super Bock, logo ali ao lado, Kieran Hebden, mais conhecido como Four Tet, preparou um caldeirão de electrónicas para uma degustação mais física e intensa. Foi precisamente essa a surpresa: é verdade que o último disco de Four Tet estava carregado de bom sexo, mas nem por isso parecia espectáculo que Kieran Hebden oferecesse um live tão convidado a um pezinho de dança. Mas assim foi. Será que ouvimos mesmo África ali pelo meio? Será que há muita gente que consiga ser assim, ao mesmo tempo cerebral e físico, ao mesmo tempo celebratório e introspectivo? A verdade é que foi um dos momentos altos do festival. Como se não tivesse chegado, ainda deu para mergulhar em “Lovecry” lá mais para o fim e perder os sentidos durante quase 10 minutos.

E depois havia os Blur. E depois havia uma multidão inteira (ou quase) entregue aos seus encantos durante mais de uma hora e meia. Aos seus singles: dos mais banais (“Coffee & TV” ou “Country House”) aos mais interessantes (“Song 2” ou “Out of Time”). Aos seus discos, ao que significaram nos anos 90. Resumindo: banda entregue, público entregue. Não há muito mais a dizer. A não ser, numa nota mais pessoal, que podiam ter tocado mais Think Tank, um disco maravilhoso se esquecermos a inenarrável “Crazy Beat”. E porque isto é tudo uma questão de gosto e de escolha, passados 30 ou 40 minutos, pareceu-nos a altura perfeita para levar na cara com 7 ou 8 canções dos Hot Snakes, perceber que canções como “Suicide Invoice” e “Creative Control” e ainda manter as pazes feitas com a adolescência. Para fechar a noite, e porque o sexo cai bem a estas horas, o concerto de Glass Candy pareceu o local perfeito para se estar e dar graças pela capacidade de mover as ancas. Ali naquele momento de celebração colectiva, as canções imediatas e ligeiras Ida No e Johnny Jewel cumpriram todas as funções exigidas.

Ao terceiro dia mais sol ainda, mais relvado verde, mais polvo de Matosinhos no estômago, mais alegria fora do trabalho. E mais música, muita, para as mais variadas escolhas. Assim de repente, e porque o relato já vai longo, o catalão Manel deu um concerto simpático no palco principal do festival por volta das 18 horas, os PAUS foram ao ATP justificar a presença nas duas versões do Primavera Sound 2013 e os Dinosaur Jr provaram porque é que são, tanto tempo depois, uma das maiores instituições do indie rock de guitarras. E aqui somos obrigados a reforçar guitarras. Ruidosas, estridentes, adolescentes, excitantes, levadas ao seu limite, essenciais. Uma banda destas nunca estará fora de moda. Não precisamos de guitarras o caralho, é o que é.

Naquele ATP onde navegam as músicas mais exigentes, foi uma delícia ver The Sea and Cake darem uma lição de como fazer canções pop sem qualquer tipo de cedências. Mesmo que aquele não fosse o cenário perfeito para ouvir aquelas canções - que vivem de detalhes, que vivem de recato. E por falar em pós-rock, por falar em cenários improváveis, os Explosions in the Sky deram um dos melhores concertos de todo o festival, imagine-se, no palco principal do Optimus Primavera Sound. Depois de concertos no Mercedes e no Blá Blá (em Matosinhos), a Orquestra Sinfónica “Explosions in the Sky”, que falhou o festival no ano passado, passou directamente para a montra principal desta loja para apresentar 6 ou 7 Concertos para guitarra escritos por eles mesmos. E com uma bela enchente. Não deixa de ser incrível ver tantos milhares de pessoas rendidos durante mais de uma hora perante uma banda de música instrumental. Os texanos foram iguais a si mesmos: o pós-rock emocional, o vai-acima-vai-abaixo conhecido, o apuro melódico admirável - um verdadeiro banho de beleza. Passaram pelo primeiro disco, foram a Those Who Tell the Truth Shall Die, Those Who Tell the Truth Shall Live Forever (2001) para resgatar a explosiva “Greet Death” e pararam em The Earth Is Not a Cold Dead Place (2003) para dar boleia a dois dos melhores temas desse disco (“Your hand in mine" e “The Only Moment We Were Alone”). Num alinhamento perto da perfeição, os Explosions in the Sky foram óptimos. Mesmo que 2001 tenha telefonado a pedi-los de volta, mesmo que tudo isto esteja visto e revisto. E não vão ser esquecidos tão facilmente.

E por falar em experiências inesquecíveis, os My Bloody Valentine confirmaram durante mais de uma hora e meia o seu estatuto de banda polarizadora. Desta vez não houve assobios e insultos, mas houve clareiras. Imensas, notórias. O shoegaze não é certamente praia para todos e o dos My Bloody Valentine não é de certeza. À custa de Dan Deacon e de uma barreira sónica que é travão para muitos ouvidos menos habituados, as clareiras foram aumentando ao longo da noite. Olhos no chão, melodias escondidas por entre as brumas do ruído escultural. Loveless aqui, tampões dentro de alguns ouvidos ali, paredes e mais paredes de ruído bom. Vozes e melodias engolidas pela espiral de ruído, desânimo diluído numa colher de frustração e uma dormência que é em tudo propositada. Uma delícia; uma daquelas experiências que é necessário viver pelo menos uma vez na vida.

E porque deixar o Optimus Primavera Sound para trás não é uma tarefa nada fácil, houve ainda vontade para ouvir 20 minutos de Headbirds, que debitou batidas para todos os gostos e feitios, e a mesma dose de The Magician, que não mediu mãos para convencer até os corpos mais cansados após três dias de festividades. Depois foi preciso clicar no off, pelo menos deste lado. É verdade o que dizem: o Primavera Sound Porto não é um festival qualquer. Pode ser um festival mais portátil que o papá catalão, mas não é por isso que deixa de ser especial. No sentido de ser mais especial que o seu progenitor. No sentido de ser um festival que coloca a cidade no mapa dos grandes festivais europeus. No sentido de já não ser possível pensar no Porto sem a existência do Primavera Sound. Coloquem o contador a zero: para o ano há mais.
· 03 Jun 2013 · 00:12 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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