Black Bombaim
Galeria Zé dos Bois, Lisboa
05 Mai 2012
DOZE HORAS DE UMA LISBOA SITIADA
Nota: horas apontadas podem não ser exactas

16:13: Preparamo-nos para a dura batalha que nos espera neste dia; é seguro dizer que, assim como a imagem da lua nesta noite particular, Lisboa raras vezes cresce(u) tanto. A oferta cultural e não só era, na sua maioria, gigantesca, mas, a ter de optar, preferiu-se a titânica. Os Black Bombaim subiriam ao palco da ZdB apenas daí a oito horas, mas a vontade de fugir ao ar nauseabundo das cidades-dormitório das quais teremos rapidamente de sair se quisermos manter a pouca sanidade que nos resta levou a melhor, e outro assombro que vai pelo nome de DJ Ride daria, às 18h, uma demonstração daquilo que é ser campeão de scratch. O dia - a noite - começava a prometer muito e cumpriu as expectativas.

© Luís Martins

19:18: À porta do Lounge, que não estava menos repleto de festa (pese a conotação supersticiosa, treze é um número bonito), iniciava-se um outro conflito: um homem versus um hoodie. Por enquanto, o hoodie levaria a melhor e a barba que o acompanha desde há poucas semanas seria inclusive elogiada por público feminino pela primeira vez, propiciando um salutar ego boost. Um projecto chamado Jibóia revelar-se-ia surpreendente - kuduro adaptado a metaleiros, ou acid-industrial do século XXI, como se os Mão Morta tocassem "Cães De Crómio", em loop, para o resto das suas vidas. O rótulo ainda não está decidido. A Lovers & Lollypops, que hoje invadiu a capital, permitiu igualmente um pé de dança antes da obrigatória hora para jantar. Os Titãs aproximavam-se.

22:20: Um jogo de futebol terminou com o resultado que se pretendia, e o semblante carregado da maioria dos presentes na pequena tasca onde se pôde ver o jogo impeliu uma deslocação mais rápida para três ruas acima, até à mudada Galeria Zé dos Bois, agora ornamentada por objectos tribais estranhos e por uma cor verde ligeiramente má. Ligeiramente. Não se quer, contudo, utilizar este espaço para discutir estéticas. Limitemo-nos a afirmar que, quando se vislumbraram os três gigantes a percorrer o bairro acima e entrar na galeria, já o peso do que estava para vir era palpável.

© Luís Martins

23:14: Jorge Coelho amornava o palco tocando três temas curtos, sozinho na guitarra, numa contemplação stoner sem palavras que não abriu assim tanto o apetite para o disco que está para sair, mas que se revelou interessante de qualquer das formas. O mesmo Jorge Coelho daria o mote, minutos depois, para o concerto do power trio barcelense. Já o coração tremia. De medo, de ansiedade, ou de emoção, ou talvez das três, misturadas.

23:49: Os Black Bombaim arrancam perigosamente, contagiam a pequena sala com o riff milenar, o groove repetitivo e hipnótico e o ritmo quase militar que constituem boa parte do novíssimo Titans, ao qual muito dificilmente será retirado o título de melhor disco made in Portugal do século XXI. Não que os Black Bombaim precisem deste género de reconhecimento ou de uma nacionalidade sequer. O que fazem é universal, libertário. O que tocam é o lado oculto do pensamento onde uma ideia de alma se deixa contagiar pela vertigem. O que demonstram é uma capacidade infinita para o rock puro e duro, uma máquina bem oleada que não deixa ninguém indiferente. Dificilmente deixa alguém vivo.

© Luís Martins

0:07: Os teclados kösmiche que caracterizam a segunda faixa de Titans fazem-se ouvir pela primeira vez, transportando os ouvintes para o meio de um enorme deserto astral onde os cometas bailam ao som da sua chama - ou talvez seja esta uma caracterização impulsionada pelas drogas, ou pelo estado de espírito alcançável via drogas, ou pelo estado de espírito alcançável via drogas que tem na música dos Black Bombaim um belíssimo atalho para aqueles que temem magoar os pulmões ou o sangue. A cavalgada rítmica e ríffica da primeira faixa desse mesmo disco, que se lhe seguiria, não contou com a presença do Imortal Adolfo Luxúria, mas as palavras deste ressoaram sem dúvida nas cabeças chocalhantes dos presentes, excepção feita ao herói solitário na luta contra um capuz negro. O idiota em questão voltou a não obedecer. Dois a zero neste campeonato à parte, trinta zero para os barcelenses.

0:32: À falta de Steve Mackay, foi-se buscar Pedro Sousa. O saxofonista português foi pedra fulcral no melhor momento do concerto, ao acompanhar de forma irrepreensível o ruído poderoso do trio atrás de si. De tal forma que não se sentiu, de todo, a falta do homem que faz de Fun House um disco ainda mais perfeito. Os Titãs continuariam a sua demanda durante cerca de mais meia hora, possibilitando inclusive um curto momento de crowdsurf (porque as gajas do Porto são todas mais fixes do que eu) finda a qual deixaram absolutamente rendidos todos e quaisquer presentes na audiência. E fisicamente quebrados, também. O dia seguinte seria decerto dedicado ao torcicolo e às dores de costas. Os gigantes não voltariam ao palco - talvez por piedade. Outros dez minutos seria overkill. Contudo, e apesar de todo este rasto de destruição e fritanço geral, os Black Bombaim têm de regressar rapidamente a Lisboa. Seja para continuar a apresentar Titans ou para uma residência mensal num qualquer espaço da capital onde se dediquem a jams de uma hora. Quem os ouve e os ama dedica-se por inteiro a este masoquismo, de ter o corpo atirado repetidamente para trás e para a frente com cada pulsar dos seus instrumentos. Faz tudo parte do jogo.

4:48 Já depois do desaparecimento momentâneo do hoodie, de cervejas tomadas num Indie Rock Café não tão à pinha como de costume, do cambalear de um conhecido VIP à porta do Lounge (crê-se que a expressão correcta será todo cego) cujo nome não revelaremos para não ofender crenças religiosas, da falta de pudor de miúdas alcoolizadas e das perguntas filosóficas de Pedro Sousa aos Cafetrenses que não estavam em Londres, é tempo de partir para casa. Porque uma noite titânica não poderia terminar da mesma forma, três breves notas: poucas coisas na vida - contando já com os Black Bombaim - serão melhores do que ouvir "Madrugada Eterna" dos KLF sentado no cais das colunas às cinco da manhã; o racismo dos revisores da CP para com membros de etnia cigana é fascinante; os Glockenwise são os maiores por se lembrarem, na Ericeira, do Rock Sem Merdas. Que venham muitas mais noites assim. De alguma maneira temos de nos sentir vivos.
· 06 Mai 2012 · 19:26 ·
Paulo André Cecílio

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