Festival Rescaldo
Teatro A Barraca / Trem Azul, Lisboa
21-22 Jan 2011
Parte importantíssima na conjectura da música mais livre/transgressora/etc. feita no burgo, o festival Rescaldo chega sempre no início do ano (este ano celebrou a quarta edição) como atestado de vitalidade daquilo que verdadeiramente interessa. Celebrando 2010 como quem olha com optimismo para 2011, o Rescaldo este ano voltou a dar várias razões para a sua existência. Mesmo que a aposta no espaço do Teatro “A Barraca” tenha sabotado um pouco as actuações de dia 21, naquele jeito de jazz-café com galhofa e tilintar de copos impositivo, o saldo foi mais do que positivo (sendo que foi impossível comparecer no dia 20). Major respect.

Dia 21

Prejudicada pelas condições da sala/hall explicitadas anteriormente, esta estreia dos Pão não deixou antever na totalidade a sua procura minuciosa. Iniciando-se com o piano nas mãos de Tiago Sousa, rapidamente tudo convergiu num drone que veio a lume de modo mais hipnótico coma a passagem deste para o harmónio. Permanecendo numa aura austera, mas prenhe de pormenores voláteis (as minudências de Travassos por vezes perdiam-se pela sala), o fluxo dos Pão foi sendo conduzido sem pressas de chegar a qualquer lado. Algures, os acordes chegaram-se da imprevisibilidade dos Supersilent, tanto pelos teclados de Tiago Sousa como do sopro mais etéreo de Pedro Sousa (a suspensão de John Surman no A Biography Of The Rev. Absalom Dawe), sem chegar a war cries, mas num (passe o trocadilho) rescaldo de guerra apaziguador. Esperam-se outras condições para confirmar as boas indicações.

Tiago Sousa © Vera Marmelo


Aguardado com enorme ansiedade, dado o pedigree dos dois músicos portugueses nos avanços da música que mais interessa vinda de e para nenhures, o encontro de Pedro Gomes (guitarra eléctrica) com Gabriel Ferrandini (bateria) foi (quase) tudo aquilo que se poderia esperar deles. O início pareceu um pouco periclitante, num “toca e foge” em que a guitarra e a bateria se iam desencontrando de um modo aparentemente pouco consciente, mas logo tudo encarrilhou para um plano de comunicação total. Apresentando três “malhas” quando esperava um contínuo, os dois músicos foram resgatando às suas linguagens um ponto de comunhão que tanto encarreirou numa espasmódica teia de acordes cerrados e percussão irresoluta, como num firepower “totalizante”. Convulsão constante, que no final se fez do caralho. Que todos os concertos esgotassem assim o fôlego.

Pedro Sousa © Vera Marmelo


Dia 22

Já há muito que não ouvíamos Manuel Mota e David Maranha a fazerem escarcéu deste modo. Amplificando aquilo que lhes seria espectável para campos próximos do ruído simbiótico entre Masayuki Takaynagi e Kaoru Abe, mas firmemente enraizado na linguagem idiossincrática que lhes é sobejamente reconhecida. Não se tratou tanto de linguagem na fórmula chamada-resposta, nem da estaticidade dos Dru, mas antes de movimentos oblíquos constantes. O drone colossal do órgão de Maranha (pense-se em Comedy do Kevin Drumm) foi mais espasmódico do que nunca, naquele jeito quase percutivo de tocar, encontrando o fingerstyle de Mota em estados de electricidade frenética, com espaço para feedback, mas sem cortar com aquele poço único onde os blues são, no final, o free do Sonny Sharrock circa Black Woman. Um todo em convulsão, revolvendo sem se estratificar até ao final. Só poderia ser abrupto. E foi tão bom como se esperava, de modo surpreendente.

Rui Nogueiro © Vera Marmelo


Apresentando pela última vez a peça "Operations Towards Infinity: Conjectures / Refutations #1 to #6", Filipe Felizardo mostrou porque 2011 vai passar certamente por ele. Com disco novo para breve, Felizardo culmina uma belíssima escalada de exploração sonora em torno do drone, com uma conjectura blues que é refutada num fluxo sonoro cada vez menos conturbado. Tornando-as uma e a mesma coisa com recurso a uma narrativa elíptica, que não procura encadear momentos, mas antes erigir um todo coerente feito de espaços amplos. Desta feita, num concerto um pouco mais nebuloso e indecifrável, mas que cada vez mais se escapa a um campo referencial contemporâneo. É também o único gajo que faz algo de interessante com um bottleneck neste país. Reflexo do fantasma transversal de Blind Willie Johnson em tudo aquilo que interessa na guitarra. A via é por aqui, sim.

Contando nas suas fileiras com o guitarrista Guilherme Canhão (Lobster, Tigrala, etc.), os Sunflare encarnam um power trio onde tudo é disposto sem grande margem para erro. Almejam uma expansividade constante que acaba por se ver presa às premissas da jam band, num todo que acaba por se colar invariavelmente à electricidade dos Comets on Fire. Solos constantes encharcados no wha-wha que se enredam num baixo firme mas com espaço para descidas mais satisfatórias (sem nunca chegar ao Inferno) e numa bateria, que sem grandes merdas, conduz a cavalgada até onde ela quer ir. Não chega a levantar voo estelar, mas irrompe a barreira sónica sem se que se denote qualquer intenção maniqueísta. Com ajuda do alto volume é certo, mas o suficiente para ser bom.

Quando o ambiente de saudável boa-disposição estava já firmemente instalado (consonante com todo o festival), unDJ MMMNNNGGGR (pseudónimo de Marcos Farrajota) tratou de oferecer uma playlist com espaço para tudo e mais alguma coisa, entre breakcore e demais bizarrias, enquanto numa pequena sala a Falhumana mostrava o porquê do seu nome. De um un-savoir-faire gritante e entre sorrisos, ninguém parecia saber muito bem o que se estava ali a passar. Nem os próprios (como fizeram questão de frisar) não-músicos.
· 26 Jan 2011 · 21:31 ·
Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
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