O vedetismo Ă© um problema, sobretudo quando afecta assuntos que facilmente se podem identificar com devoção, respeito ou expectativas. Ao lado de Antony e os seus Johnsons, Mark Kozelek era provavelmente o maior trunfo do Festival TĂmpano, mas Ă entrada da Casa das Artes de FamalicĂŁo um comunicado anunciava o cancelamento do concerto do mentor dos Red House Painters e dos Sun Kil Moon, provocado pelas suas constantes exigĂȘncias. Depois das passagens por Portugal com os Red House Painters e atĂ© a solo, muitos esperavam o reencontro com a voz de discos como Songs For a Blue Guitar, Ocean Beach, Down Colorful Hill e Old Ramon, mas tal nĂŁo aconteceu. Shame on you Mark Kozelek. Embora alguns tenham pedido a devolução do valor do bilhete (5 euros), foram, a ver pela assistĂȘncia, mais aqueles que ficaram do que aqueles que desistiram da noite e de Lisa Cerbone.
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Depois de seis anos de hiato criativo, altura em que Lisa Cerbone se dedicou a formar uma famĂlia, Ordinary Days (Little Scrubby Music), o seu Ășltimo disco, nasceu produzido por Mark Kozelek. AlĂ©m de tomar conta da produção, o mentor dos Red House Painters tocou e cantou em Ordinary Days, um registo que contou tambĂ©m com a participação de Tim Mooney (American Music Club) na bateria e Geoff Stanfield (Black Lab) no baixo. A voz de Lisa Cerbone Ă© muitas vezes comparada com as de Susanna Hoffs e Patti Griffin (e tambĂ©m com os mundos dos Innocence Mission ou dos Cocteau Twins) por ser doce, delicada e por piscar o olho ao etĂ©reo. Lisa Cerbone acabou por pisar o palco com uma realidade diferente daquela que a esperava uns dias ou horas antes: era sobre ela agora que, na ausĂȘncia de Mark Kozelek, recaĂam todas as expectativas e esperanças de uma noite agradĂĄvel. Passou de primeira parte de um espectĂĄculo para o espectĂĄculo em si e, analisadas bem as coisas, Lisa Cerbone pareceu ter acusado esse acrĂ©scimo de responsabilidade, especialmente quando revisitou temas antigos ou quando tentou dar a conhecer as novas cançÔes do disco que se encontra a escrever, registo que conta com as palavras do poeta portuguĂȘs Jorge Reis-SĂĄ.
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De guitarra na mĂŁo, partiu para as cançÔes acompanhadas pelas fotos de Nyree Watt, entretanto projectadas numa tela por detrĂĄs de si; fotos de paisagens de tons essencialmente azulados, gatos, caixas do correio, maçanetas de portas e de cenĂĄrios de cumplicidade e intimidade semelhantes aos evocados pela mĂșsica de Lisa Cerbone. As cançÔes, essas, sĂŁo reminiscentes da infĂąncia, escritas sobre os seus filhos (Lisa Cerbone Ă© jĂĄ mĂŁe de duas crianças), inspiradas numa short-story de James Joyce (a hipergentil âArabyâ) e atĂ© hĂĄ espaço para uma canção sobre Elliott Smith escrita por Jorge Reis-SĂĄ. Numa das vĂĄrias vezes que fez uma pausa para afinar a sua guitarra, brincou com a situação contando que o seu marido lhe havia dito que ela nunca conseguiria tirar a tuning license. Ao apresentar uma das suas cançÔes que surgem em filmes ou em sĂ©ries de televisĂŁo, Lisa Cerbone atĂ© chegou a tocar (ou pelo menos a tentar) pandeireta com os pĂ©s. Adequado, tendo em conta que confessou que essa mesma canção surgia numa cena em que alguĂ©m levava um tiro. Num encore precedido de muitos aplausos, Lisa Cerbone apresentou âMrs. Fosterâ, onde a certa altura se diz: âIt's hard to see the road through all that rain / All that rain / Well, she was always nice to me / Brought me lemonade and costume jewelry / But they say she loved and lost too easilyâ. Para terminar, mais um tema que teve como pano de fundo final a primeira imagem que se viu em palco: a da capa do Ășltimo disco de Lisa Cerbone, Ordinary Days, uma imagem de imensa calma e tranquilidade.
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