Jandek
Teatro Maria Matos, Lisboa
23 Jan 2010
A longa e quase total reclusão de Jandek, tópico exaustivamente traduzido em 20 línguas, pode até ser tomada como relutância por parte de um bondoso empresário industrial que não acredita em negócios sem prejuízo. Isto porque existe sempre alguém que perde nos ajustes com Corwood: seja quem decide trocar a paz de espírito por duas músicas de Jandek (a sanidade por dois álbuns seguidos), ou o patrão da sua própria privacidade, que abdica de parte dela ao admitir intrusos na sua música.
A tensão resultante dessas negociações era, pois, de cortar à faca no Lisbon Saturday do Teatro Maria Matos, onde Jandek e três músicos convidados fizeram da hora e meia em palco uma prova de resistência para os nervos. A cada vez que o homem de negro (ele, o Representante de Corwood) folheava uma página do cancioneiro, regressava então o pavor de que um pedaço de subconsciente ou determinado sonho inconfessável fosse ali exposto, na sua forma essencial e logo perante tanta gente.
Além disso, Jandek não garante sequer coordenadas de conforto para quem estiver abalado: não há melodia ou refrão para facilitar a digestão, o compromisso para com a canção é secamente nulo, as mãos do Representante tocam no baixo com um jeito irreconhecível. Pior que isso é constatar que a música de Jandek não oferece qualquer tipo de redenção ou brecha folk por onde respirar. Não há cá nada. O ar doentio enche o balão e ali permanece.
Com isto, a respiração do público transparece uma angústia diferente, a quantidade de dedos roídos é maior, há sempre um par de desistentes entre cada música e os cigarros são fumados com outra ansiedade à saída do Teatro. Percebe-se o fundamento deste incómodo no misto de tensão e pesar que sobrecarrega aquelas músicas, ora obcecadas por um coelho cor-de-rosa no colo de alguém (o terceiro tema da noite obteve o rendimento máximo do sufoco Jandek), ora remetidas a dimensões escondidas além de um espelho que revela muito mais quando é observado de esguelha. Jandek é tão desfocado como o surreal.
De modo comparável, a música de Jandek sai privilegiada com o acompanhamento de quem não esteja absolutamente consciente do seu enquadramento naquele quarto escuro – esse onde o tactear faz muito mais sentido do que o passo seguro. Nesse aspecto, os papéis dos músicos convidados contrastaram entre si: André Abel valeu muito como extensão de Jandek no piano, Sei Miguel fez uma leitura verdadeiramente impressionante, nos incisivos sublinhados de trompete tal como no silêncio a que se prestou durante muito tempo, enquanto Peter Bastien... Bem, Peter Bastien foi igual a si próprio e alinhou diversas vezes em excessos (intermináveis solos de saxofone) que o colocaram fora de órbita e ocasionalmente num concerto que não era decididamente aquele. Esteve também no seu melhor ao provocar um bem-vindo transtorno com a percussão nas paredes da sala e ao arrastar uma cadeira pelo chão, como quem relembra que os ruídos mais mundanos no exterior de uma casa podem ser horrendos quando não é descansado o sono de quem nela está deitado. E o concerto de Jandek no Maria Matos foi tudo excepto um sono descansado.
© José Frade |
A tensão resultante dessas negociações era, pois, de cortar à faca no Lisbon Saturday do Teatro Maria Matos, onde Jandek e três músicos convidados fizeram da hora e meia em palco uma prova de resistência para os nervos. A cada vez que o homem de negro (ele, o Representante de Corwood) folheava uma página do cancioneiro, regressava então o pavor de que um pedaço de subconsciente ou determinado sonho inconfessável fosse ali exposto, na sua forma essencial e logo perante tanta gente.
Além disso, Jandek não garante sequer coordenadas de conforto para quem estiver abalado: não há melodia ou refrão para facilitar a digestão, o compromisso para com a canção é secamente nulo, as mãos do Representante tocam no baixo com um jeito irreconhecível. Pior que isso é constatar que a música de Jandek não oferece qualquer tipo de redenção ou brecha folk por onde respirar. Não há cá nada. O ar doentio enche o balão e ali permanece.
© José Frade |
Com isto, a respiração do público transparece uma angústia diferente, a quantidade de dedos roídos é maior, há sempre um par de desistentes entre cada música e os cigarros são fumados com outra ansiedade à saída do Teatro. Percebe-se o fundamento deste incómodo no misto de tensão e pesar que sobrecarrega aquelas músicas, ora obcecadas por um coelho cor-de-rosa no colo de alguém (o terceiro tema da noite obteve o rendimento máximo do sufoco Jandek), ora remetidas a dimensões escondidas além de um espelho que revela muito mais quando é observado de esguelha. Jandek é tão desfocado como o surreal.
De modo comparável, a música de Jandek sai privilegiada com o acompanhamento de quem não esteja absolutamente consciente do seu enquadramento naquele quarto escuro – esse onde o tactear faz muito mais sentido do que o passo seguro. Nesse aspecto, os papéis dos músicos convidados contrastaram entre si: André Abel valeu muito como extensão de Jandek no piano, Sei Miguel fez uma leitura verdadeiramente impressionante, nos incisivos sublinhados de trompete tal como no silêncio a que se prestou durante muito tempo, enquanto Peter Bastien... Bem, Peter Bastien foi igual a si próprio e alinhou diversas vezes em excessos (intermináveis solos de saxofone) que o colocaram fora de órbita e ocasionalmente num concerto que não era decididamente aquele. Esteve também no seu melhor ao provocar um bem-vindo transtorno com a percussão nas paredes da sala e ao arrastar uma cadeira pelo chão, como quem relembra que os ruídos mais mundanos no exterior de uma casa podem ser horrendos quando não é descansado o sono de quem nela está deitado. E o concerto de Jandek no Maria Matos foi tudo excepto um sono descansado.
· 24 Jan 2010 · 19:08 ·
Miguel Arséniomigarsenio@yahoo.com
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