Desconhece-se
se as pessoas, em geral, percebem ou não o hip-hop que não passa na TV, e
se é isso que as faz ficar em casa quando uma das mais contravencionais bandas
vem a terreiro. Certo é que, quando Oddateee subiu ao palco da ZDB para fazer
o warm-up, a sala estava às moscas. Numa actuação afivelada a um alinhamento
de Oktopus (produtor do colectivo que se seguia) e a versar por cima, o músico
natural de New Jersey, “co-coming from the hood”, teve algumas tiradas
brilhantes e outras menos boas.
Sozinho, sem o DJ que o costuma acompanhar em digressão, Oddateee apelou a
um sentimento de comunidade, a uma aproximação das pessoas ao palco, à coisa
dialógica que marcou os primórdios do hip-hop. Saiu-se bem, ainda que o público,
que ia agora crescendo, nem sempre respondesse. Arrepiante foi o número em
que desfiou, uma por uma, as mortes de gente próxima, o tipo alvejado por
450 dólares, o trompetista, a miúda com Sida, etc. Mas insistiu em mostrar
às pessoas como se escrevia o seu nome artístico e em malhar no DJ, aquele “asshole” que não marcou presença.
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Compreende-se a necessidade de preencher os espaços mortiços enquanto o computador
não devolve a faixa seguinte, mas às vezes a repetição sem brilho aborrece.
No que realmente conta, Oddateee fez um set competente e percebeu-se
por que é que os Dälek pegaram neste miúdo. Sai-se melhor quando se agarra
ao groove do baixo para pôr a voz, do que quando tenta furar a bateria
ou o material samplado de que se faz acompanhar; nestes, a voz fica abafada
e é difícil ler as suas palavras. Qualidades de MC não lhe faltam, falta-lhe
talvez maior capacidade de encaixe, mais cola criativa que torne a sua música
mais forte e coesa, da raiz até às pontas.
Mas a noite era dos Dälek (lê-se “dialect”, para quem ainda não sabe). Colectivo
formado por Dälek, o peso-pesado, o MC e principal produtor, Oktopus, produtor
também a cargo das teclas, e DJ Still, o gira-disquista de serviço, senhor
da mais swingante cabeleira afro. Os Dälek de Negro, Necro, Nekros,
o primeiro disco editado em 1998, não são já os mesmos que se apresentaram
na Galeria. Entretanto cresceram muito e, sobretudo, cresceram muito depressa.
Uma das obras maiores foi o disco que gravaram a meias com Faust, nome intocável
do krautrock germânico.
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Ao vivo, tudo é diferente, é tudo mais descontrolado, mais sónico, mais avassalador.
Houve quem se queixasse da muralha de som que se constituiu e que tornava
imperceptível quase tudo. Sentiu-se, de facto, uma reverberação que tornava
macroscópicos apontamentos ligeiros de som e isso acabou por influir na degustação
plena do concerto. Possível explicação: as ondas acústicas encontravam muito
atrito, muitos espaços vazios entre a assistência e, como a sala é pequena,
as ondas chocavam entre si e adensavam o barulho, o ruído na comunicação,
já de si ruidosa, emanada da voz e instrumentos.
Uma espécie de hip-hop progressivo que tem tudo para defraudar os fundamentalistas
do hip-hop ou do metal. É preciso alguma abertura para levar com um live
sampling agressivo, aturar o berreiro de DJ Still para a agulha do gira-discos,
beats ultracinéticos e uma poesia que não cabe nesse termo. Há quem
ande a descobrir no som dos Dälek vestígios de My Bloody Valentine. Eles existem
sim, mas apenas na exacta medida que os encontramos nos Jesu, novo projecto
de Justin Broadrick (ex-Goldflesh e Techno Animal): uma nebulosa de som que
se expande como gás tóxico, que calcina tudo à passagem. E a analogia acaba
aqui, não vão os incautos do shoegaze calçar o sapato errado. Demolidor
e inspirador, simultaneamente, assim foi Dälek.
hefgomes@gmail.com