The Mars Volta
Paradise Garage, Lisboa
04 Dez 2003
Ele há um miúdo que escreve sobre música. Que faz longos exercícios de lirismo próximos da desinteria. Que manda a informação pelo cano de esgoto quando se trata de (re)escrever (sobre) um disco ou uma experiência. Não diz coisas como “o concerto dos Mars Volta foi bom, tocaram os temas X e Y...”. Prefere dizer que a actuação serviu para todos os que dão forte no dub, mas não dispensam uma trip de rock a escamotear o psicadélico. O contrário também é verdade. É esse miúdo que assina esta reportagem.

Para sempre ligados aos At The Drive-In pelo cordão umbilical, os Mars Volta surgiram, com uma hora de atraso, como pequenos demónios em vestes simples. Cedric Zavala, de barba à missionário e uma desgovernada cabeleira afro, cuspia um fulgurante caleidoscópio de energia e formas. A voz, os trejeitos articulados com o microfone, uma alma encharcada de paixão e intensidade. Foi o contorcionista da noite, chegando a aproximar-se do público da fila da frente por ambos os lados. Empoleirou-se por duas vezes na barra dos projectores. Também foi quem usou da palavra para primeiro se dirigir ao pequeno motim em baixo.

Na verdade, a assistência começou por se apresentar frouxa, admirando os artifícios sonoros orquestrados em cima do palco. É Cedric quem faz um claro incitamento à dança, à agitação. Mais tarde, num espectáculo com pouco mais de 90 minutos, houve “mosh” e “crowd surfing” e os Mars Volta, ao contrário do que costuma acontecer, não pareceram preocupar-se. Cedric ainda saltou para o balcão do bar e passeou-se por lá, microfone em riste, dançando e gesticulando. Omar Rodriguez tocou guitarra como um animal. Trajando uma camisa vermelha e calças justas, libertou-se dos seus óculos logo de início e foi uma presença simpática ao longo da noite, a maior parte do tempo ao lado do outro afro dissidente dos At The Drive-In. A banda não passou em revista “De-Loused in the Comatorium”, antes fez alguns investimentos nas fronteiras da salsa e da improvisação com passagens pontuais pelas composições presentes no disco. Protagonizaram uma ode ao improviso e ao etéreo, com pregas de rock é certo, mas notoriamente a apontar para a apoteose e magnitude criativas. A ver o que acontece em edições futuras.

Abriram com ‘Roulette Dares (The Haunt Of)’ e a incessante reposição do verso “exoskeletal junction at the railroad delayed”. Seguiu-se ‘Drunkship of Lanterns’, um dos temas mais refrescantes da mais recente fornada cançonetista dos Mars Volta, um escalonamento de guitarras e um baixo desbragado numa alucinação jazz. Juan Alderete, o executante do baixo, fazia par com o homem das peles e das maracas como a dupla mais bem comportada e ensimesmada. O baterista, que de início vestia uma t-shirt que dizia “Fuck Bush” e que prontamente a despiu, marcava o ritmo num concerto necessariamente devedor de um certo legado hispânico. Não fossem, afinal, as células propulsoras da banda, Zavala e Rodriguez, filhos de El Paso, a cidade maldita que também viu nascer os At The Drive-In, aquela banda pequena que um dia cresceu e logo morreu.

‘Televators’, tema introspectivo e melódico, deu lugar a duas manifestações de saloiada: as pessoas da frente agitavam no ar os braços em registo baladeiro e viu-se pelo menos um isqueiro aceso. Ora, a canção é um declarado tributo a Julio Venegas, como o é o resto do álbum. Através de enunciados em epígrafe como “pull the pins, save your grace / mark these words on his grave / you should have seen the curse that flew right by you”, os Mars Volta fizeram do obituário de um amigo próximo, que se suicidou depois de acordar de um coma, uma comovente celebração da vida.

A verdade é que a banda, neste seu período de gestação, não tem sido bafejada pela fortuna nos cerrados oráculos do Fatum. Cerca de um mês antes da edição do disco, Jeremy Ward, colaborador secreto dos Mars Volta e espécie de sonoplasta in vitro, morria vítima de uma overdose. O papel de Ward foi aqui desempenhado por um senhor que remisturou ao vivo os sons que saíam dos instrumentos e acrescentou efeitos de reverberação e delay à voz de Cedric. A sua posição na geografia do palco era arredada, quase na penumbra, atrás de Isaiah Owens, o homem das teclas, um negro bonacheirão que, de vez em quando, trauteava as canções.

Colando-se a um solo de baixo, no princípio do qual haviam abandonado o palco, os desertores (toda a formação à excepção de Juan) regressam para um brinde com pequenos copos de plástico e mais uns quantos temas. Feito o rescaldo, a performance foi como uma experiência endovenosa que há-de soar perigosamente a religião nos confins da memória. O concerto foi mesmo bom.
· 04 Dez 2003 · 08:00 ·
Helder Gomes
hefgomes@gmail.com

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