Evangelista / Congs For Brums
Galeria ZDB
30 Jan 2009
Carla Bozulich sobe ao palco com a expressão de quem acabara de ser pontapeada para fora de uma carrinha. Ao que parece, o veículo seguia em contra-mão. Por sua vez, o passageiro abandonado revela a ambivalência que arma apenas os mais acostumados a filtrar os extremos de uma vida: Carla Bozulich personifica o calvário e a redenção, a instabilidade e uma firme soberania, o veneno que instiga o ruído e o antídoto que o adormece. No fim, alguém referia:”Viveu muito.” Certamente. Viveu o suficiente para que a sua performance (acima de tudo, Bozulich é uma performer de plena entrega) fosse uma comunhão de intensidade e experiência, muito mais do que um concerto protocolar que oferece música em troca de aplausos.
A própria fecha a porta a protocolos quando, logo de início, confessa que uma constipação podia eventualmente condicionar a sua voz. Bastaria escutar um par de faixas de Hello, Voyager para entender como a voz é crucial no sustento do pesar que afogueia a lírica de Bozulich. Essa debilidade pode, mesmo assim, funcionar como vantagem, quando Hello, Voyager é também um disco que contraria as limitações próprias do “estado de sítio”, na medida em que cultiva melodia e rasgos de esperança num meio que parece prestes a sucumbir ao tóxico. A partir daí, a ocupação temporária de Evangelista (ela e a banda) passa a ser a inversão heróica de um acidente, que se pronuncia numa voz aquém da sua capacidade, assim como através de alguma atrapalhação inicial e de ocorrências imprevisíveis como um cão (Bartok) que a certa altura atravessa o palco.
Impressionantemente, a tal capitania vocal fragilizada foi compensada por um empenho instrumental tão capaz de abrir fissuras, através de um rock tempestuoso, como de criar contornos graciosos para incursões country pautadas por uma certa nostalgia (evidente na fabulosa cover de Antony and the Johnsons, "For Today I am a Boy"). Sentiu-se esforço suplementar na chacina rítmica (Ches Smith e Tara Barnes em grande) que foi “Smooth Jazz”, o épico condensado de Hello, Voyager que exorcizou algum desconforto e acendeu o rastilho de barris que só mais tarde explodiriam. Cada estrondo coincidiu com a ebulição temperamental de uma Carla Bozulich, que, sem nunca resvalar para o teatral, reforçava o sermão escalando a coluna à direita do palco ou malhando violentamente no tamborzinho (ou isso) que anuncia o amor como única salvação em “Hello, Voyager!” (que não desiludiu em relação ao assalto que é em disco). Perto do final, cantou entre o público, deixando-se tombar sobre os braços de quem a apanhasse. Constipada ou não, a mulher deu-se. Ámen a isso.
Abençoado por uma espontaneidade etílica, determinado membro do público achou por bem prolongar a noite com a manipulação dos pedais e engenhos que até ali estavam aos pés de Carla Bozulich. Olá, viajante convertido.
Antes de tudo isso, o percussionista Ches Smith, em modo Congs for Brums, provou ter a escola e o sentido técnico certos para que alguns dos seus desvarios jazz e padrões abertos revelassem uma imaginação cativante. Entusiasmou até arriscar umas manobras menos conseguidas no sampler e vibrafone.
Evangelista © Vera Marmelo |
A própria fecha a porta a protocolos quando, logo de início, confessa que uma constipação podia eventualmente condicionar a sua voz. Bastaria escutar um par de faixas de Hello, Voyager para entender como a voz é crucial no sustento do pesar que afogueia a lírica de Bozulich. Essa debilidade pode, mesmo assim, funcionar como vantagem, quando Hello, Voyager é também um disco que contraria as limitações próprias do “estado de sítio”, na medida em que cultiva melodia e rasgos de esperança num meio que parece prestes a sucumbir ao tóxico. A partir daí, a ocupação temporária de Evangelista (ela e a banda) passa a ser a inversão heróica de um acidente, que se pronuncia numa voz aquém da sua capacidade, assim como através de alguma atrapalhação inicial e de ocorrências imprevisíveis como um cão (Bartok) que a certa altura atravessa o palco.
Evangelista © Vera Marmelo |
Impressionantemente, a tal capitania vocal fragilizada foi compensada por um empenho instrumental tão capaz de abrir fissuras, através de um rock tempestuoso, como de criar contornos graciosos para incursões country pautadas por uma certa nostalgia (evidente na fabulosa cover de Antony and the Johnsons, "For Today I am a Boy"). Sentiu-se esforço suplementar na chacina rítmica (Ches Smith e Tara Barnes em grande) que foi “Smooth Jazz”, o épico condensado de Hello, Voyager que exorcizou algum desconforto e acendeu o rastilho de barris que só mais tarde explodiriam. Cada estrondo coincidiu com a ebulição temperamental de uma Carla Bozulich, que, sem nunca resvalar para o teatral, reforçava o sermão escalando a coluna à direita do palco ou malhando violentamente no tamborzinho (ou isso) que anuncia o amor como única salvação em “Hello, Voyager!” (que não desiludiu em relação ao assalto que é em disco). Perto do final, cantou entre o público, deixando-se tombar sobre os braços de quem a apanhasse. Constipada ou não, a mulher deu-se. Ámen a isso.
Abençoado por uma espontaneidade etílica, determinado membro do público achou por bem prolongar a noite com a manipulação dos pedais e engenhos que até ali estavam aos pés de Carla Bozulich. Olá, viajante convertido.
Congs for Brums © Vera Marmelo |
Antes de tudo isso, o percussionista Ches Smith, em modo Congs for Brums, provou ter a escola e o sentido técnico certos para que alguns dos seus desvarios jazz e padrões abertos revelassem uma imaginação cativante. Entusiasmou até arriscar umas manobras menos conseguidas no sampler e vibrafone.
· 02 Fev 2009 · 18:14 ·
Miguel Arséniomigarsenio@yahoo.com
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