Otomo Yoshihide New Jazz Orchestra
Gulbenkian, Lisboa
01 Ago 2008
Pela vontade espontânea e entusiasmo que provoca nos músicos que reúne à sua volta, Otomo Yoshihide poderá gabar-se do seu papel como catalisador de talentos na esfera do free jazz e da música improvisada, do mesmo modo que os realizadores Jim Jarmusch ou Woody Allen podem alegar a vaidade de quem já contou, nos seus filmes, com a participação de actores altamente cotados, sem ter de lhes pagar um ordenado-padrão. Assim acontece nos três casos porque um intérprete perspicaz sabe bem quando deve abdicar de regalias para (em regime de quase voluntariado) gozar do privilégio de ser dirigido (e ensinado) por um mestre. O japonês Otomo Yoshihide, figura justificadamente encarregue de estrear o cartaz do Festival Jazz em Agosto, é - de facto - um Mestre, seja pela riqueza multidisciplinar de um percurso que o leva a descobrir novas possibilidades para a guitarra com a mesma inventividade com que manipula as agulhas de um (ou mais) gira-discos, seja pelas revoluções orientadas nuns Ground Zero tão imprevisíveis quanto colossais e (subliminarmente) influentes no legado, seja simplesmente por nunca parecer forçar a constatação de que a sua presença é invariavelmente legítima nos lugares cimeiros de um campeonato tão aguerridamente competitivo como o da música improvisada oriunda do Japão.

ONJO © Nuno Martins

Não admira – portanto - que tal individualidade invoque no sempre agradável Anfiteatro da Gulbenkian, em Lisboa, um ensemble (Otomo Yoshihide New Jazz Orchestra ou ONJO), cuja formação muito facilmente se confunde com a de um all star internacional, que reúne não só a melhor nata do improv japonês (a aliada Sachiko M ou Taku Unami, com o braço direito ligado nessa noite), mas também sinónimos recorrentes de “genialidade de rédea solta” como Mats Gustaffson (saxofone barítono) ou Axel Dörner (trompete). Na verdade, a constituição da ONJO é tão descaradamente luxuriosa que chega a ser impróprio (para o coração) reparar que a própria Kahimi Karie, diva pop nipónica e voz aveludada do bombom K.K.K.K.K., ali se encontra para pronunciar apenas uma dúzia de frases.

Parece à partida insignificante o contributo de Karie, mas é a sua “voz de elevador” pronunciadamente apática e revelada durante os momentos de silêncio aparente, que sinaliza as transições nas interpretações (muito livres) das composições de Out to Lunch de Eric Dolphy (visionário e provocador artilhado com ébria alma jazz). Foram essas o prato forte da noite, que acabou por ser apelativa mais por via da sincronização e do entrosamento do colectivo do que pela chama ateada pelos executantes nas suas interpretações individuais. Compreende-se, contudo, o motivo da intervenção disciplinada por parte de peões tão habituados a rasgos desenfreados quanto Mats Gustafsonn, quando, na verdade, a actuação tem o seu próprio guião (aberto a oscilações repentinas entre lower case ruminante e estoiros de jazz mais convencional) e a batuta de maestro nas mãos de Otomo Yoshihide, que deduz dedos à mão direita em contagem decrescente e tudo mais. Mesmo assim, faltou algum sal e pimenta. Importa, além disso, revelar que reside em Kahimi Karie a principal novidade face ao disco de 2005 Otomo Yoshihide’s New Jazz Orchestra Plays Eric Dolphy’s Out to Lunch- que reproduz, à sua maneira peculiar, o alinhamento do disco da Blue Note originalmente lançado em 1964. Nesse sentido, um alinhamento centrado em peças-chave como “Hat and Beard” e “Something Sweet, Something Tender”, pode não ter sido exactamente fresco e empolgante, mas foi decerto convincente na reinterpretação do material que lhe serviu de fonte.

ONJO © Nuno Martins

No dia em que comemorava 49 anos, Otomo Yoshihide recebeu a prenda que merecia: um público em grande parte rendido (à obra, talvez mais do que à prestação) e a companhia de amigos, perfeitamente dispostos a comungar da boa vibração e do gozo de uma elegia prestada a uma referência que se presume ser transversal a todos (ou quase todos). A pergunta responde-se a si mesma: qual é o melhor dia para aceitar o envelhecimento de mais um aniversário sem sofrer nenhum desgosto? É o 31 de Julho, porque depois entra Agosto.
· 01 Ago 2008 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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