Animal Collective / Atlas Sound
Lux, Lisboa
28 Mai 2008
É cada vez mais possível elaborar com segurança alguma futurologia quanto ao lugar que os Animal Collective ocuparão na imprensa musical em 2038, ano dedicado ao trigésimo aniversário da passagem por Portugal de uma banda em perfeito estado de graça e sem quaisquer sinais aparentes de fadiga criativa (e isto depois de uma cavalgada discográfica marcada por uma dezena de registos sem percalços ou mácula de maior). Se o esférico de cristal não falhar na sua previsão, é natural que o absoluto privilégio concedido com a presente digressão europeia dos Animal Collective seja recordado com uma foto de família – que registe os quatro membros ainda na (aparentemente eterna) juventude da casa dos 30 – e manchetes prováveis como:Primavera de 2008: esses foram os tempos!...,ou, na versão mais adequada ao público de Lisboa, Memorial dos concertos de Animal Collective em Lisboa: baptismos pop à beira-rio. Mesmo assim, e enquanto o calendário indicar 2008 como ano corrente, são legítimos todos os superlativos e exageros para tentar descrever com a exactidão possível a magia e sensação de anti-gravidade e rejuvenescimento que preencheu toda a sala inferior do Lux no cruzamento de dia 28 para 29 de Maio.

A transição, nessa ocasião efectivada pelo ponteiro que marca a meia-noite, é, afinal, uma das principais mais-valias no caso dos Animal Collective, corpo capaz de assumir mil maravilhosas posições, caminhando por força de um mais arrojado pé-sonda e outro untado com toda a sabedoria pop possível – formando, com isso, arco movível sob o qual flúi rio impregnado de enclaves sensoriais vários (repare-se em como os AC seduzem cada vez mais o techno e a sua elasticidade extended) e reluzente orgânica silvestre recentemente mais declarada em Strawberry Jam. Assim avançou a noite do Lux, sem lugar para a estagnação, como uma mixtape de alegria interminável, confirmando a ideia de que o típico alinhamento de Animal Collective não se limita à reprodução dos seus temas clássicos (e foram vários os que desfilaram). Os autores de Feels não se encontram em debandada, mas também não adormeceram sobre o nicho de conforto oferecido pela aclamação de Sung Tongs. Nem sequer houve quem levasse muito a peito a falta de Deakin, guitarrista que normalmente adita substância às muralhas de som caleidoscópico, pois era perceptível que seria apenas acessório (ou mero espectador) nas alturas em que Geologist (investigador sonoro em parafuso), Avey Tare e Panda Bear se entregam principalmente a uma tribuna repleta de samplers, caixas de efeitos e restante parafernália analógica avulsa.

“Maior que a vida” é o que se pode dizer acerca da rotação de registos e sentimentos que os Animal Collective agitam na tômbola com um afinco olímpico que não cede sequer clareira desabitada de som para recuperação de fôlego. Nesse aspecto, a polivalência assumida por Avey Tare e Panda Bear na transição (mais uma vez) entre as vozes, instrumentos afectivos (guitarra para o primeiro, samplers para o segundo) e precursão (a atingir ocasionalmente picos dramáticos), faz deles temporários gafanhotos que fertilizam toda a porção da relva estival que serve de passadeira ao trio. Ficam reunidas condições únicas para os Animal Collective procederem à súmula inclusiva de todos os sons de celebração - desde os coros passíveis de serem apropriados por claques de futebol até aos ritmos de dança – afectados por uma saudável bipolaridade que os torna eufóricos e, logo de seguida, contemplativos, nostálgicos e, nos instantes seguintes, porta-vozes do optimismo recolhido ao amanhã que vislumbraram antes dos demais.

Torna-se fácil e natural o tresdobramento que leva “Fireworks” a ser gigantesca salamandra, capaz de suportar dentro do seu ventre uma outra canção, afastar-se e regressar à cauda do seu majestoso refrão e tudo isso sem nunca cessar a repetida reprodução daquele som que é pura ânsia constante instalada por um meteorito-locomotiva que está sempre prestes a chegar. Houve também lugar para a ascensão gradual da ligeiramente adulterada “Leaf House” através de uma via traqueana, visitas prestadas a fundo de catálogo e, já em encore, “Who Could Win a Rabbit?” em modo punky reggae party e “Grass” como derradeiro souvenir de agradecimento. Como se não bastasse o jubileu que formam essas canções, a noite foi abrilhantada pelos inevitáveis temas inéditos, entre os quais o raiar transversal de “Brother Sport”, que, entre os presentes, vai já sendo segredada como a melhor música dos Animal Collective ainda por gravar. Sobra a certeza de que quanto menos sei acerca da música que virei a escutar a estes homens, mais gosto dos animais.

Sobrou, antes do palco pertencer aos Animal Collective, a ideia de que faz todo o sentido incluir Atlas Sound nas primeiras partes desta digressão, ou não fosse o projecto a solo de Bradford Cox, membro de permanência tremida nos Deerhunter, tão propício a servir uma sensibilidade altamente pessoal como fundo de coral para agitação do “vai e vem” de vagas do mesmo som infinitamente horizontal, um pouco como acontece em Person Pitch de Panda Bear. A muito discreta presença de Bradford Cox é marcada pelo low-low-profile que afasta a sua esquelética aparência dos olhares mais mórbidos e aproxima o seu oceano de som puro dos mais dispostos a recebê-lo como maná espiritual.
· 28 Mai 2008 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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