Cristina Branco
Theatro Circo, Braga
15 Dez 2007
Cristina Branco entra no palco da belíssima sala principal do Theatro Circo já com a música em perfeito e harmonioso andamento. E no entanto não são os músicos de outrora os responsáveis pela “banda-sonora”. Há em Cristina Branco um desejo que se vê, que se nota, que se sente. O de não querer nunca repetir-se; o de sair por vezes do espaço confortável que conquistou por força própria e recriar-se, dar um passo em frente. Por isso escolheu músicos de insuspeita qualidade: Alexandre Frazão na bateria, Mário Delgado nas guitarras, Bernardo Moreira no contrabaixo e Ricardo Dias no piano (o único que se repete aqui da formação habitual). Mais tarde ou mais cedo Cristina Branco teria que o fazer: criar um espectáculo em que presta homenagem a Zeca Afonso. Estava-lhe no sangue. Escolheu fazê-lo no ano em que se lembra a sua morte (há 20 anos atrás), e em boa altura.

Mal Cristina Branco soltou a voz em “Menino d’Oiro” percebeu-se que aquela seria uma noite de uma bela homenagem (apesar de o Theatro Circo não ter registado sala cheia). Logo ali conseguiu-se criar uma harmonia perfeita entre todos os músicos e Cristina Branco, e, fundamentalmente, com as memórias de José Afonso. E depois de um arranque assim as coisas ficaram facilitadas. Foi ver percorrer Abril> (o disco onde Cristina Branco presta homenagem a Zeca Afonso) e as canções da vida daquele que apelidaram de cantor da revolução de uma perspectiva feminina e, sobretudo, legitima. Impossível resistir à beleza que a versão para “Maio Maduro Maio” deixa ficar no ar; ou à dança invisível de “Canto Moço”. As canções foram surgindo de uma forma tão natural quanto possível.

Mário Delgado é um elemento fundamental no desenvolvimento das canções. Mas também o é Ricardo Dias, que além de ter feito os arranjos para estas versões (e que belíssimo trabalho conseguiu) e de tocar piano, ainda empresta a sua voz aqui e ali. Alexandre Frazão, sempre perfeito, tem o seu momento para brilhar numa versão intensa para “A morte saiu à rua”, canção que Cristina Branco fez questão de apresentar como a dedicatória de Zeca Afonso a José Dias Coelho, o pintor assassinado pela PIDE em tempos felizmente idos. Bernardo Moreira fechava um círculo que se notava coeso, coerente, harmonioso. Era possível sentir o intimismo e a confiança musical que existe entre os cinco donos do palco. Poderia ser tremendamente bizarro ouvir Cristina Branco sem uma guitarra portuguesa e com uma bateria mas não é: é harmonioso. A voz de Cristina Branco tem destas coisas.

“Os Índios da meia-praia” e “Cantigas do Maio” foram também momentos altos pela sua importância e persistência no ouvido. “Era um redondo vocábulo”, numa versão de banda diferente daquela que Cristina Branco normalmente partilhava ao vivo com o piano de Ricardo Dias, é sempre candidata a momento maior quando marque presença. Porque a voz de Cristina Branco lhe assenta como uma luva e porque o texto que se afirma na canção é um dos melhores alguma vez escritos na língua de Camões. Apetece mostrá-lo todo: “Era um redondo vocábulo / Uma soma agreste / Revelavam-se ondas / Em maninhos dedos / Polpas seus cabelos / Resíduos de lar / Pelos degraus de Laura / A tinta caía / No móvel vazio / Congregando farpas / Chamando o telefone / Matando baratas / A fúria crescia / Clamando vingança / Nos degraus de Laura / No quarto das danças / Na rua os meninos / Brincando e Laura / Na sala de espera / Inda o ar educa”. No final de tudo, ouro sobre azul, “Venham mais cinco” deixou magia no ar na forma da voz sempre perfeita de Cristina Branco. Momentos de beleza rara. Zeca Afonso ficaria orgulhoso.
· 15 Dez 2007 · 08:00 ·
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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