Mudhoney
Culto Bar, Cacilhas
11 Jul 2007
Distracção. Opções editoriais. Coincidências. Ninguém (que eu saiba) da nossa imprensa musical escreveu uma linha sobre a actuação dos Mudhoney no Culto bar, em Cacilhas. A banda de Seattle só mereceu uma nota alguns dias antes no Ípsilon, suplemento do Público, em jeito de lembrete desenvolvido para efeitos de agenda. Mas ao concerto ninguém foi. Corrijo, fomos. Corrijo novamente, eu fui e assisti a um dos melhores concertos dos últimos anos.

Concedo que cada um vê o concerto que quer. Mas é exasperante esta ausência de uma palavra escrita na imprensa após a primeira apresentação ao vivo da banda em Portugal. Permitam-me, por isso, uma rememoração: confesso que não entendo a indiferença a que os Mudhoney foram/são votados. Desde que aterraram em 1989 por estas bandas, ao som da voz de António Sérgio, não foram mais do que um culto tão secreto que ninguém dava por ele. Uma nota de rodapé de um texto que privilegiava os Nirvana, Pearl Jam, Alice In Chains, Smashing Pumpkins, quando a página seguinte já nem espaço para guitarras tinha.

Mas nos últimos dois anos, com tanta gente a glosar a energia do rock esperava-se uma celebração mais “mediática”. Afinal que são os “defeitos” dos Mudhoney quando comparados com os Strokes ou os Comets on Fire? Serão as rugas, as dobras, as fotografias em papel amarelecido? O rock sem glamour e sem propósitos? A falta de palidez made in Oxford ou de voluntarismo sensível made in Montreal?

Há mais de 20 anos que rejeitam dramatismos, seriedade, confidências dolorosas, literariedades, grandiloquências. São uma lenda que a nossa imprensa musical não deseja revisitar, se porventura alguma vez revisitou. Mas a sala estava cheia. Ninguém queria saber se existiriam, depois, palavras escritas. Malta com mais e menos de trinta anos. Ex-psychobillys, ex-surfers. Ex-grungers (???) Alguns já carecas. Cabelos brancos. Anos 1990. Século XXI. T-shirt dos Tool. T-shirt de Goo: onde se devia ler SY lê-se Lightning Bolt. E raparigas, que sabiam porque estavam ali.

Os primeiros acordes foram dos d3ö. Rock acelerado, muito bem tocado. Original? Não necessariamente, mas sincero e bruto. Pelo menos, os músicos pareciam acreditar no que estavam a fazer, mesmo quando perto de uma emulação dos Dead Boys ou dos The Damned. Há qualquer coisa neste punk coimbrão que abraça de forma ambígua as suas referências. Talvez seja esse abraço que, de tão apaixonado, faz nascer algo agradavelmente burlesco como foi a interpretação final/perfomance de Toni Fortuna, perante o olhar, aparentemente, sério de Mark Arm.
Foram duas horas que aqueceram a sala de tal modo, que quando os quatro norte-americanos subiram ao palco só foi necessário um riff. Um riff de You Got It para tudo ganhar vida, como num imaginário filme musical onde tudo dança sem ordem, nem disciplina: o palco, o público, os corpos, o chão, o tecto, os balcões. Sublinhe-se a futilidade de descrever um concerto rock num espaço pequeno, com gente embriagada de entusiasmo e um grupo a cantar canções pela milésima vez, como se fosse a primeira vez. Ou se esteve lá não. Ou não.

Ainda assim deixem-me qualquer coisa: houve som, distorção, velocidade, suor, ritmo, reconhecimento, reencontro, repetição. Houve In Out of Grace (com direito a um solo de bateria que ameaçou transformar o concerto numa rave), "Touch Me I´m Sick" (cantado por toda a gente), "Suck You Dry", "Mud Ride", "Into The Drink", entre outras. Berrou-se, cantou-se. Houve stage-diving e crowd-surfing. Tudo sob o olhar vítreo de Mark Arm, que no fim de cada tema mexia os lábios só para desenhar um sorriso escarninho (porque sorria ele? ainda me pergunto).

E houve Mudhoney uma banda que não faz punk, nem hardcore, nem metal, nem garage-rock, nem blues. Faz tudo isto com uma mestria – e uma delicadeza, sim uma delicadeza que deve algo ao jazz – que tarde a ser reconhecida. Coloquem-nos na linhagem dos Sonics, Stooges, Black Sabbath, Rocket From The Tombs, Motorhead, Flipper, Wipers, The Saints, Discharge, Black Flag, Melvins, The Dicks, Kyuss, Harry Pussy, Harvey Milk e, sim, Comets on Fire ou Lightning Bolt. É lá que eles merecem estar. Julgo que aqueles, que na madrugada de quarta-feira correram na direcção do palco ao som de "Hate the Police", sabem isso.

O que posso dizer mais? Foi como se no meio da sala estivesse uma força centrípeta. Quando acabou o concerto era como se não tivesse havido concerto. Ainda hoje me belisco. Aconteceu mesmo?
· 11 Jul 2007 · 08:00 ·
José Marmeleira

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