Cat Power
Aula Magna, Lisboa
04 Dez 2006
Aparentemente, Chan Marshall cansou de ser melancólica e habituou-se a ser sexy. Por força da crescente atenção prestada a um cada vez mais perceptível glamour, deixou de ser o colapso eminente, que subia ao palco na digressão de You Are Free - essa que aterrou no Porto para infame e desastroso concerto -, e parece ter finalmente despertado para uma mais confortável e segura lucidez enquanto diva de perfume sulista que não prescinde dos préstimos de uma banda de luxo. Quem acorreu à Aula Magna para tentar descortinar o que se passa além da franja de Chan “Cat Power” Marshall, usufruiu também da oportunidade de ver consigo em palco os Dirty Delta Blues, onde alinham o baterista Jim White dos Dirty Three, Gregg Foreman dos Delta 72, Erik Paparozzi recrutado a uns mais obscuros Lizard Music e o imediatamente identificável guitarrista Judah Bauer, que habitualmente alinha pelos Blues Explosion. De acordo com palavras da própria Chan, jamais voltariam os mesmos músicos a partilhar um palco naqueles termos. À parte desse direito exclusivo da curta digressão, não foi necessário escutar mais que quatro músicas, para que o auditório universitário se apercebesse que a noite iria ser de performance - no sentido rock do termo -, muito mais do que de intimidade ou de intersecção de alma individual (a de Chan) com alma colectiva (a do público).
Contudo, são de negociação delicada os sacrifícios que implica uma prestação centrada em The Greatest e no seu teor vintage proporcional a bares onde a desgraça e o fumo se misturam – tanto mais quando se sabe que muitos ainda não se afeiçoaram por completo ao mais recente disco de Cat Power, ao qual se estranha o incumprimento da habitual quota mínima de momentos musicalmente íntimos. Esses que foram preteridos em prol de um travo ostensivamente Americano (via country e r&b) que, até aí, se tornava secundário perante a dianteira que tomava a mais ofuscante exposição de Chan Marshall. Ela, que entrou em palco a dar um uso de Fred Astaire aos sapatos brancos adquiridos no preciso dia em Lisboa, parece agora livre do pesar mais confessional daquele seu múltiplo que se perdeu entre as árvores a que serviu de porta-voz (num filme experimental e atípico lançado em DVD). A Chan que desliza os pés enquanto se aproxima da banda parece surpreendentemente alegre, disposta a comunicar por transacção de empatia e, simultaneamente, a desfazer-se do desconforto com mimeses e linguagens gestuais supostamente espontâneas. Parece-se muito mais com uma diva aterrada de pára-quedas, reencontrada nas raízes musicais sulistas, desresponsabilizada dos erros que a atormentam por agora ser apenas parte de um quinteto que lhe serve como rede de aparo (embora alguma falta de entrosamento tenha deixado escapar uns quantos “pregos” denunciados a Judah Bauer). Chan Marshall passa, nos momentos de maior elegância, a ser tão felina quanto apregoa o seu desígnio. Além de linda e plausivelmente carismática. Sempre.
A partir dessa tal base de confiança que fortifica Marshall desde que, a certa altura deste ano, abraçou a sobriedade e noção mais apurada do quão é admirada, o concerto progride em torno do último The Greatest que cede ao início da prestação rendições amenas da homónima “The Greatest”, que teria resultado melhor em solilóquio, “Living Proof”, em que a voz fogosa de Chan denuncia em demasia alguns hábitos menos saudáveis, e, mais adiante, uma “Willie” (na sua versão curta) que vence pela espontaneidade e evidência de que Bauer e Jim White encontravam-se já em território recomendável dos respectivos calibres. Até aí, tudo suficientemente competente e agradável quanto baste. Porém e sem subestimar o talento somado na Dirty Delta Blues, percebe-se pela intensidade dos aplausos que, para o público presente na Aula Magna, Chan Marshall sozinha em palco constituía maior estímulo e ponto de interesse. Nem que fosse por algum apetite mórbido de a ver protagonizar mais um daqueles ataque de cólera que a estigmatizaram. A ameaça ainda ganha terreno quando a songwriter interrompe abruptamente a curta estadia ao piano porque alguém tinha tossido e, com isso, insinuado de que fora péssima na interpretação de uma “I Don’t Blame You”, cujo magnetismo repetido nas teclas a impede de ser sabotada por um mais presente nervosismo verificado nessa altura. “Hate”, que, liricamente, será das mais brutais faixas incluídas em The Greatest, encontra a autora de Moon Pix limitada a voz e guitarra e sugere esperança com a negação aplicada à frase que em disco surgia temivelmente suicida:I said I hate myself and I want to die. A esperança desdobra-se no momento único que foi a versão de “Ramblin’ Man“ - vigorosamente interpretado de pé, com guitarra em braços e uma frontalidade pouco habitual numa Chan insular.
Assim que cessados os momentos de maior brilhantismo a solo e dissipado o elíptico cinzentismo Marshalliano, volta a banda a palco e o concerto retoma ao seu posto mais genérico e autómato - com a versão de “Crazy” dos Gnarls Barkley e da muito adulterada “(I Can’t get no) Satisfaction” a revelarem-se momentos acessórios que muito mais rendiam se tivessem sido ocupados por parte de um Moon Pix totalmente esquecido do alinhamento. Entretanto, “Naked if I want to” vê a sua introdução ser prolongada um pouco além do esperado por ausência mais demorada da felina vocalista que tinha recolhido aos bastidores. Uma das muitas covers - que se escutavam ao disco de 2000 - passa, no contexto actual, a merecer uma segunda leitura – isto porque, em conformidade, Chan Marshall encontra-se caprichosamente bem com a vida e impelida a fazer apenas o que mais lhe agrada. Parece já não ter necessidade de arriscar os picos dramáticos de outrora – o que só prova que se mantém receosa de expor demasiado. Com isso, é óbvio que considerável e preciosa parte do seu reportório mais interessante seja renegado a algum desuso, por já não coincidir com o que sente a sua compositora, tal como por influência da fragilidade que pode instalar nos momentos em que é transposto para o palco – sendo que a camuflagem ideal acaba por ser a prioridade atribuída às covers e a todas músicas onde as influências alheias imperam sobre emoções ampliadas pelo minimalismo da fórmula voz e guitarra acústica (essa, que desapareceu em The Greatest).
O concerto de segunda-feira passada não foi uma desilusão, nem tão pouco inesquecível – acabou por ser o sublinhar do dilema que sugere o momento actual vivido no âmbito Cat Power: será mais favorável e produtivo escavar forçosamente o sublime intimo a alguém que costuma ser desequilibrado na doação disso ou o melhor é mesmo aceitar o optimismo e vivacidade rockeira que desse alguém emana quando descontraidamente enquadrada num colectivo? A incógnita perdura e o misticismo de Chan Marshall ganha volume. Assim que o palco ficou vazio, escutou-se “Superafim” das arruaceiras paulistas Cansei de Ser Sexy. Nesse brinde electro, a igualmente felina Lovefoxxx repete frases de independência feminina: Vê se me esquece / eu cansei Superafim, superafim, superafim de mim. Parece ser esse sentimento comum à mais extraordinária das escritoras de canções da sua geração – mais do que nunca, parece a fim de gozar das regalias que lhe facilitou o seu dom. Chan Marshall encontra-se finalmente livre. Deve sentir-se privilegiado todo aquele que a testemunhar nesse estado de graça.
Contudo, são de negociação delicada os sacrifícios que implica uma prestação centrada em The Greatest e no seu teor vintage proporcional a bares onde a desgraça e o fumo se misturam – tanto mais quando se sabe que muitos ainda não se afeiçoaram por completo ao mais recente disco de Cat Power, ao qual se estranha o incumprimento da habitual quota mínima de momentos musicalmente íntimos. Esses que foram preteridos em prol de um travo ostensivamente Americano (via country e r&b) que, até aí, se tornava secundário perante a dianteira que tomava a mais ofuscante exposição de Chan Marshall. Ela, que entrou em palco a dar um uso de Fred Astaire aos sapatos brancos adquiridos no preciso dia em Lisboa, parece agora livre do pesar mais confessional daquele seu múltiplo que se perdeu entre as árvores a que serviu de porta-voz (num filme experimental e atípico lançado em DVD). A Chan que desliza os pés enquanto se aproxima da banda parece surpreendentemente alegre, disposta a comunicar por transacção de empatia e, simultaneamente, a desfazer-se do desconforto com mimeses e linguagens gestuais supostamente espontâneas. Parece-se muito mais com uma diva aterrada de pára-quedas, reencontrada nas raízes musicais sulistas, desresponsabilizada dos erros que a atormentam por agora ser apenas parte de um quinteto que lhe serve como rede de aparo (embora alguma falta de entrosamento tenha deixado escapar uns quantos “pregos” denunciados a Judah Bauer). Chan Marshall passa, nos momentos de maior elegância, a ser tão felina quanto apregoa o seu desígnio. Além de linda e plausivelmente carismática. Sempre.
A partir dessa tal base de confiança que fortifica Marshall desde que, a certa altura deste ano, abraçou a sobriedade e noção mais apurada do quão é admirada, o concerto progride em torno do último The Greatest que cede ao início da prestação rendições amenas da homónima “The Greatest”, que teria resultado melhor em solilóquio, “Living Proof”, em que a voz fogosa de Chan denuncia em demasia alguns hábitos menos saudáveis, e, mais adiante, uma “Willie” (na sua versão curta) que vence pela espontaneidade e evidência de que Bauer e Jim White encontravam-se já em território recomendável dos respectivos calibres. Até aí, tudo suficientemente competente e agradável quanto baste. Porém e sem subestimar o talento somado na Dirty Delta Blues, percebe-se pela intensidade dos aplausos que, para o público presente na Aula Magna, Chan Marshall sozinha em palco constituía maior estímulo e ponto de interesse. Nem que fosse por algum apetite mórbido de a ver protagonizar mais um daqueles ataque de cólera que a estigmatizaram. A ameaça ainda ganha terreno quando a songwriter interrompe abruptamente a curta estadia ao piano porque alguém tinha tossido e, com isso, insinuado de que fora péssima na interpretação de uma “I Don’t Blame You”, cujo magnetismo repetido nas teclas a impede de ser sabotada por um mais presente nervosismo verificado nessa altura. “Hate”, que, liricamente, será das mais brutais faixas incluídas em The Greatest, encontra a autora de Moon Pix limitada a voz e guitarra e sugere esperança com a negação aplicada à frase que em disco surgia temivelmente suicida:I said I hate myself and I want to die. A esperança desdobra-se no momento único que foi a versão de “Ramblin’ Man“ - vigorosamente interpretado de pé, com guitarra em braços e uma frontalidade pouco habitual numa Chan insular.
Assim que cessados os momentos de maior brilhantismo a solo e dissipado o elíptico cinzentismo Marshalliano, volta a banda a palco e o concerto retoma ao seu posto mais genérico e autómato - com a versão de “Crazy” dos Gnarls Barkley e da muito adulterada “(I Can’t get no) Satisfaction” a revelarem-se momentos acessórios que muito mais rendiam se tivessem sido ocupados por parte de um Moon Pix totalmente esquecido do alinhamento. Entretanto, “Naked if I want to” vê a sua introdução ser prolongada um pouco além do esperado por ausência mais demorada da felina vocalista que tinha recolhido aos bastidores. Uma das muitas covers - que se escutavam ao disco de 2000 - passa, no contexto actual, a merecer uma segunda leitura – isto porque, em conformidade, Chan Marshall encontra-se caprichosamente bem com a vida e impelida a fazer apenas o que mais lhe agrada. Parece já não ter necessidade de arriscar os picos dramáticos de outrora – o que só prova que se mantém receosa de expor demasiado. Com isso, é óbvio que considerável e preciosa parte do seu reportório mais interessante seja renegado a algum desuso, por já não coincidir com o que sente a sua compositora, tal como por influência da fragilidade que pode instalar nos momentos em que é transposto para o palco – sendo que a camuflagem ideal acaba por ser a prioridade atribuída às covers e a todas músicas onde as influências alheias imperam sobre emoções ampliadas pelo minimalismo da fórmula voz e guitarra acústica (essa, que desapareceu em The Greatest).
O concerto de segunda-feira passada não foi uma desilusão, nem tão pouco inesquecível – acabou por ser o sublinhar do dilema que sugere o momento actual vivido no âmbito Cat Power: será mais favorável e produtivo escavar forçosamente o sublime intimo a alguém que costuma ser desequilibrado na doação disso ou o melhor é mesmo aceitar o optimismo e vivacidade rockeira que desse alguém emana quando descontraidamente enquadrada num colectivo? A incógnita perdura e o misticismo de Chan Marshall ganha volume. Assim que o palco ficou vazio, escutou-se “Superafim” das arruaceiras paulistas Cansei de Ser Sexy. Nesse brinde electro, a igualmente felina Lovefoxxx repete frases de independência feminina: Vê se me esquece / eu cansei Superafim, superafim, superafim de mim. Parece ser esse sentimento comum à mais extraordinária das escritoras de canções da sua geração – mais do que nunca, parece a fim de gozar das regalias que lhe facilitou o seu dom. Chan Marshall encontra-se finalmente livre. Deve sentir-se privilegiado todo aquele que a testemunhar nesse estado de graça.
· 04 Dez 2006 · 08:00 ·
Miguel Arséniomigarsenio@yahoo.com
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