Chic / Kool & the Gang
Pavilhão Atlântico, Lisboa
11 Nov 2006
Quem, ao sábado à noite, optar pela avulsa nostalgia de 70 / inícios de 80 que oferece o programa temático Viva la Disco no canal VH-1, sabe à partida que, durante a primeira metade do programa, terá direito a aleatório maná retro que pode ir da afronta púbica imposta pela versão não-censurada (raramente exibida) de “I’m so Excited” das Pointer Sisters ao psicadelismo megalómano de “Can you Feel it” dos Jackson Five, sem ser descurada a passagem pelo prateado tecido spandex e pelos lendários penteados afro que ainda hoje são sinónimo de coolness e de presença vincada em desafios da NBA. Sabe-se também que a música genuinamente disco pertence marginal e circunscrita a minoritários canais de televisão por cabo, cuja codificação em sistema NSTC torne baças e desfocadas as aguerridas cores abrilhantadas por mil reflexos da esfera suspensa a partir do tecto em chamas (aquele que não precisa de água e que deve arder, arder). A actualização e transposição da mesma para contextos actuais derrapa quase sempre num facilitismo dejá-vu absolutamente irremediável. Como adereço nostálgico e consumível actual, a suposta disco vale essencialmente como enquadramento favorável a um estudo demográfico ou estatístico centrado na moldura humana que acorreu no sábado ao Pavilhão Atlântico para mais uma maratona de Disco Fever. Aconselhava-se o uso de adereços típicos da época – e houve quem arriscasse (e bem) isso – para instalar o ambiente que exigem as presenças dos Chic e Kool & the Gang. Ou pálidos equivalentes do que foram esses um dia, como já de seguida se ficará a saber.

Chic © Ana Faria

Sobre os Chic e o respeito que devem merecer, refira-se apenas que foi o inestimável Nile Rodgers, excelso produtor de uma infinidade de êxitos e guitarra ritmo do grupo, o responsável pelo arranjo que haveriam de samplar os Sugarhill Gang em “Rapper’s Delight” e a partir daí estabelecer coordenadas para todo o hip hop germinado a partir da costa Este dos Estados Unidos. No que diz respeito à encarnação dos Chic que subiu ao palco do Atlântico, passa essa informação a ser totalmente acessória pelo simples facto de Nile Rodgers se encontrar apenas omnipresente na composição das músicas e não fisicamente (tal como acontecera num excelente concerto ocorrido – a cargo dos outros Chic - no Festival Sónar de Junho passado). Em seu lugar e como representantes de recurso desta secundária encarnação dos Chic no activo, surgem as damas Norma Jean Wright e a ostensivamente platinada Luci Martin – ou seja, elementos que, em temporada de glória, se limitavam a oferecer a voz e a magia hipnótica do jogo de anca ao todo. Integradas no espectáculo após despachado um par de músicas de aquecimento, as senhoras fazem os possíveis por reproduzir a boa forma de outrem, mas, nas suas costas, têm uma banda-figurante orientada por um saxofonista italiano sem a menor graça nos seus apontamentos e por um terceiro vocalista fisionomicamente semelhante ao futebolista Roberto Carlos, com a agravante deste nem por uma vez tirar a mão esquerda do bolso. Em certas alturas, o espectáculo decorre de modo tão automatizado que quase parece assente e sustentado por um playback parcial (o virtuosismo do solo de guitarra tocada atrás das costas provoca a desconfiança). Como não podia deixar de ser, houve a explosão freak out de “Le Freak”, mas a ideia que mais pesa sobre estes Chic é de que todo o talento mora do outro lado da linha divisória.

Kool & the Gang © Ana Faria

Talento de sobra e dúbia gestão do mesmo é o que de imediato se sente a uns Kool & the Gang que em palco são quinze, mas que podiam ser trinta caso se repetisse nesse dobro a tendência para perder mais tempo na simulação de danças decalcadas aos vídeos da anomalia narcótica que conhecemos por Bobby Brown, do que numa mais construtiva dedicação aos respectivos instrumentos musicais. A seriedade rui, logo de início, quando, do nada, surge em palco alguém com as roupas de um Flavor Flav modernizado que escuta no iPod um zapping fulminante dos êxitos que celebrizaram os Kool & the Gang (a passagem por “Celebrate” é, de imediato, reconhecida e ovacionada). Depois disso, o concerto em si decorre como uma permanente batalha entre o genuíno e influente old school de escola disco-funk – e o actual corpo Kooliano ainda conta com suficientes veteranos para sustentar isso – e toda uma armada de pretensiosos agitadores de escola MTV que demasiadas vezes abafam o Spirit of the Boogie. Há tempo para uma rendição mais r & b de “Hollywood Swinging” e para duelo de fôlego entre os trompetes que se degladiam na “Jungle Boogie” que, aquando do seu uso em Pulp Fiction, reinstalou na Europa – a partir de Cannes – a avidez pela música negra de 70. Um pouco perdido em todo aquele aparato, mas senhor do seu baixo ritmicamente catalizador, por lá anda o próprio Kool Robert Bell sempre sorridente. Assim que se escutam os primeiros acordes ao clássico absoluto “Summer Madness”, recorda-se em jeito de elegia a ausência do recém-falecido guitarrista Charles Smith que muito contribuíra para o perfume ameno desse peça-chave em qualquer mixtape veraneante. Quando tudo corre bem, não se percebe o porquê do discurso de engate assumido por alguém que, muito despropositadamente, acaba por perturbar a serenidade a uma “Summer Madness” que, no momento exacto daquele levitante solo de teclado, abre caminho para uma muito mais pastelona “Cherish the Love”, que acusa muito mais flagrantemente a sua data de origem. Antes fosse assim com tudo o resto: colado ao seu próprio tempo, que soou algo incaracterístico por influência de todos os presentes em palco que se preocuparam mais em explorar o formato MTV que a oferecer suporte à celebração do funk e disco que reinavam essa noite. Caso seja necessário atribuir culpas a alguém, blame it on the boogie.
· 11 Nov 2006 · 08:00 ·
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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