Chico Buarque
Coliseu dos Recreios, Lisboa
08 Nov 2006
O pano sobe e o cantor vai dizendo “voltei a cantar”. Como se acreditássemos, como se fosse verdade. Nesta meia dúzia de anos (coisa arredondada) ele continuou sempre presente, e se é verdade que não apresentou coisas novas, continuou sempre presente entre nós, sempre o fomos ouvindo, volta e meia - semana sim, semana não - lá íamos à prateleira pegar num disco antigo para ficarmos viciados pela 27ª vez naquelas canções de sentimentos e melodias pegajosas, que se colam em harmonia perfeita, daquelas coisas contagiosas que não nos abandonam mais e passamos nós mesmos a fazer parte delas. Fomos vivendo o culto, em cada disco, em cada canção, em cada pedacinho de sentimento transformado em música trauteável de forma ligeira. Mais do que saborear do tal novo disco Carioca (o talento continua todo o mesmo, álbum belo do princípio ao fim), viver ao vivo a música de um dos maiores poetas/compositores/cantores do mundo era das experiências mais aguardadas do ano (ver ao vivo um solo de Keith Jarrett e um concerto de Tom Waits ao piano são os outros dois desejos do ser humano comum). O cantor volta a cantar e apresenta um tema de 1972 e logo depois seguido de um outro mais recente. Com a banda em máxima eficiência, o salto de mais de trinta anos entre as canções é invisível, as músicas vão-se seguindo numa coerência perfeita. Estamos ainda no início e não pode faltar “O Futebol” – são entregues duas camisolas actuais (de Nuno Gomes e do menino Anderson), mas os verdadeiros fãs de bola certamente terão sentido mais a dedicatória aos heróis maiores de sempre: “Mané” Garrincha, Pélé, Coluna, Eusébio. “Morena de Angola”, pérola de balanço irrequieto, faz a sala abanar timidamente os ombros - à falta de mais capacidade dançante do povo português - e chega a primeira grande ovação. Vamos depois para uma sequência de temas recentes e concluímos que “Outros Sonhos” será presença segura em best of’s futuros, e que há uma unidade secreta que apega estas canções, quer sejam composições de 1982 ou de 2006. Vários exemplos da colaboração com Edu Lobo são apresentados, mas os melhores são guardados para o final oficial do espectáculo. Há uma sequência cinematográfica que reúne duas das melhores novas-canções (“As Atrizes” + Ela Faz Cinema”), que é fechada com a belíssima “Eu Te Amo” – e é este o primeiro pico de emoção intensa do espectáculo, o instante em que sentimos um arrepio total pelo corpo, “te dei meus olhos p’ra tomares conta, agora conta como hei de partir”. E antes disto já tinha havido um momento samba quase João Gilberto, de tão simples, bela e näif: “o nosso amor é tão bom / o horário é que nunca combina / eu sou funcionário / ela é dançarina”. No programa que é distribuído no início do espectáculo a surpresa é estragada, sabemos as músicas todas que vão ser tocadas e neste momento sabemos que já não falta muito para acabar. Cada canção que passa (antiga ou mais recente) vai ganhando cada vez mais peso, porque sabemos que não faltará muito para o cantor se despedir de vez, que talvez só daqui a dez anos (previsão optimista) o possamos rever - a voz certinha, as canções que desfazem no coração, o mito, o génio - aqui ao pé de nós. “Bye Bye Brasil”, na tradição das canções-postais/correspondência (“Samba de Orly”, “Meu Caro Amigo”), é um dos tesouros do baú e outro momento propenso a arrepios na espinha – “com a bênção do Nosso Senhor o sol nunca mais vai se pôr”. A participação vocal esforçada de Wilson das Neves (co-autor) em “Grande Hotel” conquista o público todo, antes da dupla de canções da parceria Edu Lobo que encerrará o concerto de vez (“ir deixando a pele em cada palco e não olhar p’ra trás e nem jamais dizer adeus”). Já acabou, caramba, já acabou e agora é bater palmas, bater palmas com força para ele voltar, só mais uma, só mais uma ou duas ou três ou a noite toda, que uma noite sem dormir nunca fez mal a ninguém. Ele volta, e canta uma, especial: (hoje o samba saiu procurando você) “Quem te viu, quem te vê”. Mais palmas, estamos em pé e as palmas das mãos já começam a doer, mas continuamos, até ele voltar. Tinha de ser, a música sobre a festa da nossa revolução, “foi bonita a festa, pá”, foi. E o fim, o fim mesmo, o fim que tinha de ser perfeito, foi. “Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês” e um Coliseu inteiro entoa a letra da musiquita e é impossível pedirmos melhor. Como se a perfeição fosse possível, de vez em quando, às vezes acreditámos que sim. “E pela minha lei a gente era obrigada a ser feliz”. Nós fomos.

· 08 Nov 2006 · 08:00 ·
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com
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