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Daniel Menche Guts

2012
eMego


Sem querer perpetuar uma semi-narrativa em torno do esgotamento criativo do noise, é facilmente constatável que uma das razões desse mesmo vazio é a sua insistência numa dimensão puramente cerebral. Uma exploração anímica que ignora todo o potencial físico do ruído (não necessariamente confrontacional), para se abstrair numa atmosfera intangível. Um disco com o título de Guts aponta, desde logo, em sentido contrário à tendência para a über-conceptualização processual do estrilho. Mesmo que o caso em questão seja, para todos os efeitos, um conceito. Não propriamente o abandono do barulho à sua natureza mais primordial e física, mas o facto de se tratar de um disco criado a partir das entranhas de um piano.

Conceito simples, sem grande espaço para digressões explicativas, e que apesar de não ser de todo, uma novidade, sempre partiu de um dos gajos que mais interessam no mundo do noise. Além de continuar, de modo subliminar, uma estranha obsessão do Daniel Menche em torno de Chihuahas, com uma capa que nos revela o interior desse canídeo algo idiota (culpe-se a Paris Hilton) sem instigar um humor abjecto. Álbum de investigação minuciosa em torno do piano preparado, Guts eleva esse conceito para o domínio do som mais abrasivo, sem sacrificar todo o arsenal harmónico à sua disposição, pela obstinação em fazer do instrumento uma máquina de tortura. Com um ataque preciso às cordas e às madeiras que tornam estas quatro longas faixas em momentos de uma brutalidade em contínua descoberta.

Sendo o tema mais curto (com 10 minutos) “Guts 2 x 4” é o statement as in malha de abertura que escancara logo o potencial mais bruto daquilo que se vai passar ao longo do disco. Tema sem concessões que conjura todos os sons possíveis numa manta densa que por entre as rapasgens, subtones e drones se vai construindo/destruindo continuamente num pico de ruído discernível. Apresentações feitas e Guts cede à tensão de um feedback sobre o qual vão sendo chicoteadas as cordas do piano, com todo um horror subliminar a palpitar continuamente até descambar numa impenetrável parede de som convulso na linha de experiências mais feéricas do Xenakis como Persepolis. Horror que, sem assumir uma tonalidade gratuita, se sente também em “Guts 2”. Onde a ressonância e as reverberações assumem o lugar do silêncio, como se a banda sonora de Texas Chainsaw Massacre fosse revista à luz dos ensinamentos do Stockhausen.

Para o final, ficam os drones mais imponentes de “Guts 3”. Peça que se vai adensando numa lógica circular que parte da contenção até chegar a um onslaught cavernoso. Momento absoluto de ruído(s) sedimentado(s) com laboriosa paciência, a dissipar-se numa nuvem de cordas varridas numa poluição benigna. E a relembrar como o Kevin Drumm era tão brilhante neste tipo de dinâmicas por alturas do Comedy - com quem colaborou no recomendável Gauntlet. Referência de respeito, mas (como as anteriores) a vaguear pela casualidade formal, tendo em conta o peso que a obra de Menche assume.

Mais do que forçar qualquer reinvenção, Guts reforça a linguagem do músico de Portland num disco onde o objecto – piano – serve meramente de matéria prima (literal) para objectivos que passam muito além do escrutínio asséptico. Regressando à ideia inicial, há por aqui um lado físico. Humano. E é isso que, apesar de alguma intransigência normal tratando-se de um álbum com 70 minutos, faz de Guts uma obra maior. Mesmo que em seu redor flutuem demasiadas propostas subpar num oceano tépido, este último tomo de uma discografia imponente não pede quasiquer meças à comparação frívola ou à novidade. É, acima de tudo uma declaração de intenções que, num mundo cheio delas, tem aqui exemplo acabado. É bom saber que se pode contar com isso.


Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
24/02/2012