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Hyetal Broadcast

2011
Black Acre


Uma das armadilhas mais frequentes em campos mais ou menos tangenciais Ă  mĂșsica de dança Ă© conseguir dar uma sequĂȘncia digna a todo o buzz inflacionado por dois ou trĂȘs singles brilhantes, quando chega a altura de arriscar o formato longa duração. Em tempos recentes, basta pensar como o Underwater Dancehall do Pinch se refugiou de modo sonolento nas premissas de “Qawwali” ou em Great Lenghts do Martyn como uma pĂĄlida sombra de malhas como “Broken” ou “All I Have is Memories” (Ghost People a repor a dignidade?). Isto sem entrar a fundo na escavação nevrĂĄlgica do falhanço de nomes vindos do Jungle, da House e demais gĂ©neros club-friendly. A lista Ă© infinita. Usando as duas referĂȘncias acima como forma de contextualizar de modo lato o aparecimento de Hyetal no seio da viragem pĂłs-dubstep para o confuso conceito do UK Bass, tambĂ©m Broadcast jogava com as expectativas de um breve passado glorioso.

Tendo dado os primeiros passos no ressaca de um dubstep em modo auto-fĂĄgico, David Corney (nome verdadeiro do mĂșsico de Bristol) foi-se continuamente demarcando da militĂąncia das tarolas quebradas e dos sub-graves, para se acercar de uma linguagem personalizada onde as memĂłrias dos anos 80 eram revistas Ă  luz da mĂșsica britĂąnica made in UK. As comparaçÔes frequentes a Miami Vice, ao Prince ou a alguma melancolia prĂ©-IDM a contraporem as associaçÔes a gente menor como o Peverelist ou Shortstuff, sem com isso entrar pela norma rehash que anda a dinamitar a memĂłria colectiva. Uma ascensĂŁo discreta das boas impressĂ”es deixadas com Neon Speech atĂ© a essa malha indescritĂ­vel de linda que Ă© a “Phoenix” e que deixou expectativas quase intangĂ­veis para o ĂĄlbum de estreia.

Quando saiu em Abril, “Phoenix” estava ainda demasiado presente para que Broadcast se afirmasse como um objecto de valor. Com os recursos e tiques que fizeram dessa canção algo tĂŁo monumental a incidirem com demasiada frequĂȘncia um pouco por todo o lado, acabou por ser prematuramente chutado para canto com aquela esperança tĂ©nue de repescagem quando houvesse tempo/disposição/cabeça para tal. Aquela tesĂŁo de mijo que rapidamente dĂĄ em nada e que sĂł o necessĂĄrio distanciamento temporal permite refrear o suficiente para que se possa ouvir sem entrar pela justaposição mesquinha. Algo que sĂł agora veio a acontecer, numa altura em que os necessĂĄrios balanços levam a uma escavação mais consciente.

Concluindo, fui injusto para com Broadcast. Apesar de ser inegĂĄvel a insistĂȘncia nas batidas mergulhadas em reverb e nos sintetizadores de nĂ©on, existem demasiadas ideias ao longo de Broadcast para que este nĂŁo seja meramente aquele amontoado de variaçÔes sobre a “Phoenix” que se previa e que, em abono da verdade, era sugerido com a, ainda assim fascinante, “Island Diamonds”. Para todos os efeitos, ambas estĂŁo presentes aqui, logo apĂłs a entrada planante com “Ritual” a apontar para uma tonalidade mais sorumbĂĄtica que virĂĄ a ter repercussĂŁo ao longo do disco. Uma nota de sintetizador em escalada triunfal (pense-se na entrada da “Money For Nothing” minus azeite) que se desvanece nas profundezas do baixo e de uma batida soterrada, antes de se enredar num harmĂłnico luminoso e vozes baças. Aquilo que se pede a uma malha de entrada.

Esse lado soturno, que tem tambĂ©m servido de identidade para a mediania recente do Zomby ou do Sully, torna-se particularmente explĂ­cito em “Dime Piece”, “Boneyard” e no final com a reveladora “Black Black Black”. A primeira suspende-se numa descida cavernosa do baixo para se ir adensando Ă s custas de ecos e rendilhados de sintetizador em choque benigno, enquanto “Black Black Black” conta com a voz da Alison Garner para uma recuperação do som de Bristol por via da realidade pĂłs-dubstep em cadĂȘncia hermĂ©tica, como que a fechar o cĂ­rculo iniciado com “Ritual”. “Boneyard” vai alimentado um 4/4 escorreito de sons alienantes para desembocar num faux-vibrafone em melodia circular. DescendĂȘncia mais ou menos discreta da house que em “Searchlight” Ă© revelada sem pruridos e com sample de voz eufĂłrica, num paralelo mais paranĂłico com a sensualidade de Velour (projecto de Corney com o Julio Bashmore).

“Transmission” e “The Chase” sĂŁo dois interlĂșdios a revelar que o Jon Harvell e o John Carpenter sĂŁo (quase) sempre referĂȘncias de valor, enquanto “Beach Scene” Ă© tangencial a “Phoenix” (omnipresente) no uso da cadĂȘncia da “I Would Die 4 U” para a transmutar numa praia sintĂ©tica, onde o tropicalismo Ă© sujeito ao filtro plĂĄstico do CSI : Miami. A necessĂĄria diversĂŁo. Desvios subtis a uma fĂłrmula reconhecida que permitem que Broadcast nĂŁo se venha a transformar num marasmo tĂ©pido, em constante labuta sobre os seus mĂ©ritos. Apesar de uma coerĂȘncia demasiado linear, Broadcast nĂŁo se deixa adormecer, e desviando-se continuamente do efeito papel-de-parede com um uso inteligente de todo o manancial tecnolĂłgico consegue superar a difĂ­cil tarefa de construir um ĂĄlbum de modo perfeitamente digno. Mesmo que tenha esperado uns meses para me aperceber disso.


Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com
30/11/2011