DISCOS
Vetiver
To Find Me Gone
· 11 Set 2006 · 08:00 ·
Hippies semi-urbanos tiram o freak de freak-folk mas mantêm a beleza.
Às vezes é difícil ler alguém que, na sua escrita, se inclui a ele próprio. Directamente, quero dizer. Charlie Kaufman, argumentista que eu admiro imensamente, fê-lo em Adaptation. Mas inventou um irmão gémeo que depois até morre. Até partilhou os créditos de argumentista com ele, com o rapaz inexistente. Tudo isto pelo próprio trabalho (um professor meu dizia que não tinha sido nomeado para os óscares por causa da brincadeira). Não vou fazê-lo. Vou, contudo, pôr-me a mim próprio aqui.
Não por uma questão de ego, mas por uma questão de não ter outra maneira de começar isto. De ter andado às voltas e voltas com introduções algo pobres. Umas começavam por focar que To Find Me Gone é apenas bonito (ideia roubada a uma miúda gira que hoje em dia acha o disco aborrecido), outras começavam por focar que os Vetiver são hippies e usam cabelos compridos e barbas (mas conseguem, contudo, ser bem mais interessantes que quaisquer friques que por aí andam, seja nos festivais de Verão ou todas as tardes - especialmente de Primavera e Verão - no Adamastor), e outras por dizer que a banda deixou o freak de freak-folk para trás neste segundo álbum.
Parece-me que aquilo que deve ser focado é, especialmente, a última ideia. Mas uma boa forma de introduzir (e de concluir tudo) seria mesmo realçar a beleza do disco, que não passa disco, de um disco bonito. Não vai mudar a vida de ninguém, não vai mudar a forma de ver a música de ninguém, é só um punhado de boas canções. Cantadas pela voz de Andy Cabic. Já falei disso antes, uma vez saí do metro no Marquês de Pombal, vindo das aulas, e estavam os Vetiver a sair da Feira do Livro em 2005. Iam tocar no Lux e, por alguma razão, não me apeteceu ir. Mas vi aquelas pessoas a sair do Parque Eduardo VII e pensei: “Quem é esta gente que anda para aqui vestida assim?”. Eles tinham penas nos chapéus de coco e tinham chapéus de coco. Era estranho. Mas um deles tinha cabelo comprido (com uma pena de índio) e um brinco de pirata e reconheci a sua cara, porque é estupidamente famoso e até andou com a Lindsay Lohan, se me apetecer acreditar no que por aí é dito. Era o Devendra Banhart e esse eu sabia quem era, tinha adormecido várias vezes (no bom sentido, acho eu) ao som do Rejoicing in the Hands e esperava o Cripple Crow com ansiedade. E então enviei mensagens escritas a duas amigas giras, porque elas eram/são realmente fãs do tipo e tal e eu até sou simpático (bem, não sou, acho que era qualquer coisa como “Vi o Devendra no Marquês e tu não.”).
Talvez devesse ser mais tolerante. Eles são famosos, portanto não podem ser más pessoas. Claro que não é bem assim. Mas adiante. Neste texto hipotético, que podia ter sido feito, se eu tivesse seguido a hipótese da beleza, falaria da beleza na introdução, algo como “às vezes - e só às vezes, de vez em quando - a beleza pode ser suficiente”, do disco em si no desenvolvimento, e, no final da conclusão, escreveria algo como “e a beleza, por agora, é suficiente. Às vezes, às vezes.” Foi assim que me ensinaram a estruturar composições na escola primária. Introdução-desenvolvimento-conclusão, portanto acho que faria isso.
Agora que já falei demasiado sobre mim, posso passar a falar sobre o disco. A presença do tal pirata não se nota assim tanto, talvez porque passou a celebridade grande, enche uma Aula Magna, tem um caso com a Lindsay Lohan, etc., não quero saber, sinceramente. E já não há nada daquilo que poderia remeter, em Vetiver, o primeiro disco da banda, para aquela designação que toda a gente adora adorar/odiar/ignorar e que hoje em dia já não tem grande força. Não há nenhum instrumento desafinado, a produção é cristalina, a voz de Andy Cabic, um dos que, se bem me lembro, tinha chapéu de coco e aparece sempre ao lado de Devendra Banhart ao vivo (ajudou-o, para meu deleite, a fazer uma versão de “Doo Wop (That Thing”, da Lauryn Hill, no Sudoeste, e não há palavras suficientes para agradecer-lhe - mesmo assim, em termos de street cred pura, o Will Oldham ganha ao Devendra Banhart aos pontos, ou seja, toca o “Ignition” do R. Kelly), é suave e sussurada e bonita. E as canções também.
Começa com “Been So Long”, que, curiosamente, começa com um drone. Mas é algo tão limpo e suave e nada agressivo que não remete, em nada, para a cultura noise e experimental que recebeu de braços abertos toda esta gente, a posse (para ler em americano, como em - e odeio-me por mencionar esta banda num texto sobre um disco bonito - Insane Clown Posse; para quem não sabe, é a crew dele, ou, para quem não fala americano, a malta com quem ele se dá) de Devendra - que levou à fama estes Vetiver e nomes como Joanna Newsom e Jana Hunter, já para não falar no papel importante que teve na revitalização de Vashti Bunyan. Basicamente, todas as canções do disco são memoráveis. Mas memoráveis de uma forma estranha. Não se impõem.
Fui jantar a um restaurante nepalês em Algés no outro dia e havia lá daquelas entradas redondas crocantes que acho que são feitas de lentilhas que são extremamente populares no Oriente. Até sabem bem sem nada, mas lá têm molhos e assim. Um deles é de menta. O meu pai compra daquilo de vez em quando e é só pôr ao lume e em poucos segundos estão prontas. E, ao saboreá-las, lembrei-me do sabor da menta, quase automaticamente. Esta imagem pode ser usada de duas maneiras em relação ao disco. Não fico com nenhuma das canções na cabeça, depois de ter ouvido o disco bastantes vezes, mas quando começo a ouvi-las lembro-me instantaneamente delas. A outra maneira de usar a imagem é dizer que o riff que se repete ao longo da quarta faixa, “Idle Ties”, uma canção bonita, lembra-me o riff de “Queen Bitch” do David Bowie que tão bem fecha o Life Aquatic do Wes Anderson. São dois acordes, um deles repetido, mas volta sempre ao início. Parece que alguém começa a tocar e depois se arrepende. É a minha imaginação. Depois, há uma guitarra lá para o final de “Won’t Be Me” que me lembra uma canção dos Faces com o Rod Stewart, aquela em que ele canta qualquer coisa como “I wish that I knew what I know now when I was younger”. E isso é bastante mau, mas consigo sempre abstrair-me do facto.
Há coros femininos e percussão esparsa e rica mas pouco usual na música ocidental em “Been So Long”, com as guitarras suaves e a voz de Cabic. Depois entra uma flauta lá ao fundo. O que nos remete sempre para o deserto e para uma procura da geração psicadélica (e não só) de novas sonoridades, extra-ocidentais, e essas coisas todas. Isto tudo contrasta com Brooklyn, que é donde os Vetiver são. Daí serem hippies semi-urbanos. Há um vibrafone em “You May Be Blue” e uma melodia de guitarra perfeita em “No One Word”, que é cantada por Cabic e depois convida ao aparecimento de umas cordas (continuamos, então, no deserto californiano dos anos 60 e 70, em termos musicais), “I Know No Pardon” tem muito de country, com Cabic a arrastar a voz, em “Maureen” as cordas deslizam pela guitarra e tudo é, como no resto do disco, apenas bonito. E chega. Em “Red Lantern Girls” aparece uma guitarra, vinda do nada, distorcida, a arrastar-se durante alguns minutos, como alguém que aparece a correr no meio do cenário idílico do deserto. “Won’t Be Me” tem o melhor refrão do disco, e “Down At El Rio” fecha-o, finalmente, parando tudo com os “la la la la la” patenteados de Banhart, com a guitarra a fazer o mesmo.
Portanto, só os últimos parágrafos é que interessam realmente, o resto é só uma maneira pobre de disfarçar que não consegui encontrar uma introdução decente para isto tudo, tornando isto numa meta-crítica ou algo que se pareça. Talvez To Find Me Gone mereça mais, um disco mais maduro (a infantilidade, ou melhor, a inocência, pode muito bem ser associada ao freak-folk), menos livre, mais pensado, mas também bonito. Não consigo ver, sinceramente, nada de errado com isto. Mas também, para dizer a verdade, não consigo ver nada de excepcionalmente correcto aqui. É só bonito. Também não consigo encontrar nada de estranho aqui. Pode-se dizer que o mais estranho deste disco é mesmo não ser nada estranho. Mas é bonito. Há um punhado de canções bonitas. E às vezes isso é suficiente. “Às vezes, às vezes.”
Rodrigo NogueiraNão por uma questão de ego, mas por uma questão de não ter outra maneira de começar isto. De ter andado às voltas e voltas com introduções algo pobres. Umas começavam por focar que To Find Me Gone é apenas bonito (ideia roubada a uma miúda gira que hoje em dia acha o disco aborrecido), outras começavam por focar que os Vetiver são hippies e usam cabelos compridos e barbas (mas conseguem, contudo, ser bem mais interessantes que quaisquer friques que por aí andam, seja nos festivais de Verão ou todas as tardes - especialmente de Primavera e Verão - no Adamastor), e outras por dizer que a banda deixou o freak de freak-folk para trás neste segundo álbum.
Parece-me que aquilo que deve ser focado é, especialmente, a última ideia. Mas uma boa forma de introduzir (e de concluir tudo) seria mesmo realçar a beleza do disco, que não passa disco, de um disco bonito. Não vai mudar a vida de ninguém, não vai mudar a forma de ver a música de ninguém, é só um punhado de boas canções. Cantadas pela voz de Andy Cabic. Já falei disso antes, uma vez saí do metro no Marquês de Pombal, vindo das aulas, e estavam os Vetiver a sair da Feira do Livro em 2005. Iam tocar no Lux e, por alguma razão, não me apeteceu ir. Mas vi aquelas pessoas a sair do Parque Eduardo VII e pensei: “Quem é esta gente que anda para aqui vestida assim?”. Eles tinham penas nos chapéus de coco e tinham chapéus de coco. Era estranho. Mas um deles tinha cabelo comprido (com uma pena de índio) e um brinco de pirata e reconheci a sua cara, porque é estupidamente famoso e até andou com a Lindsay Lohan, se me apetecer acreditar no que por aí é dito. Era o Devendra Banhart e esse eu sabia quem era, tinha adormecido várias vezes (no bom sentido, acho eu) ao som do Rejoicing in the Hands e esperava o Cripple Crow com ansiedade. E então enviei mensagens escritas a duas amigas giras, porque elas eram/são realmente fãs do tipo e tal e eu até sou simpático (bem, não sou, acho que era qualquer coisa como “Vi o Devendra no Marquês e tu não.”).
Talvez devesse ser mais tolerante. Eles são famosos, portanto não podem ser más pessoas. Claro que não é bem assim. Mas adiante. Neste texto hipotético, que podia ter sido feito, se eu tivesse seguido a hipótese da beleza, falaria da beleza na introdução, algo como “às vezes - e só às vezes, de vez em quando - a beleza pode ser suficiente”, do disco em si no desenvolvimento, e, no final da conclusão, escreveria algo como “e a beleza, por agora, é suficiente. Às vezes, às vezes.” Foi assim que me ensinaram a estruturar composições na escola primária. Introdução-desenvolvimento-conclusão, portanto acho que faria isso.
Agora que já falei demasiado sobre mim, posso passar a falar sobre o disco. A presença do tal pirata não se nota assim tanto, talvez porque passou a celebridade grande, enche uma Aula Magna, tem um caso com a Lindsay Lohan, etc., não quero saber, sinceramente. E já não há nada daquilo que poderia remeter, em Vetiver, o primeiro disco da banda, para aquela designação que toda a gente adora adorar/odiar/ignorar e que hoje em dia já não tem grande força. Não há nenhum instrumento desafinado, a produção é cristalina, a voz de Andy Cabic, um dos que, se bem me lembro, tinha chapéu de coco e aparece sempre ao lado de Devendra Banhart ao vivo (ajudou-o, para meu deleite, a fazer uma versão de “Doo Wop (That Thing”, da Lauryn Hill, no Sudoeste, e não há palavras suficientes para agradecer-lhe - mesmo assim, em termos de street cred pura, o Will Oldham ganha ao Devendra Banhart aos pontos, ou seja, toca o “Ignition” do R. Kelly), é suave e sussurada e bonita. E as canções também.
Começa com “Been So Long”, que, curiosamente, começa com um drone. Mas é algo tão limpo e suave e nada agressivo que não remete, em nada, para a cultura noise e experimental que recebeu de braços abertos toda esta gente, a posse (para ler em americano, como em - e odeio-me por mencionar esta banda num texto sobre um disco bonito - Insane Clown Posse; para quem não sabe, é a crew dele, ou, para quem não fala americano, a malta com quem ele se dá) de Devendra - que levou à fama estes Vetiver e nomes como Joanna Newsom e Jana Hunter, já para não falar no papel importante que teve na revitalização de Vashti Bunyan. Basicamente, todas as canções do disco são memoráveis. Mas memoráveis de uma forma estranha. Não se impõem.
Fui jantar a um restaurante nepalês em Algés no outro dia e havia lá daquelas entradas redondas crocantes que acho que são feitas de lentilhas que são extremamente populares no Oriente. Até sabem bem sem nada, mas lá têm molhos e assim. Um deles é de menta. O meu pai compra daquilo de vez em quando e é só pôr ao lume e em poucos segundos estão prontas. E, ao saboreá-las, lembrei-me do sabor da menta, quase automaticamente. Esta imagem pode ser usada de duas maneiras em relação ao disco. Não fico com nenhuma das canções na cabeça, depois de ter ouvido o disco bastantes vezes, mas quando começo a ouvi-las lembro-me instantaneamente delas. A outra maneira de usar a imagem é dizer que o riff que se repete ao longo da quarta faixa, “Idle Ties”, uma canção bonita, lembra-me o riff de “Queen Bitch” do David Bowie que tão bem fecha o Life Aquatic do Wes Anderson. São dois acordes, um deles repetido, mas volta sempre ao início. Parece que alguém começa a tocar e depois se arrepende. É a minha imaginação. Depois, há uma guitarra lá para o final de “Won’t Be Me” que me lembra uma canção dos Faces com o Rod Stewart, aquela em que ele canta qualquer coisa como “I wish that I knew what I know now when I was younger”. E isso é bastante mau, mas consigo sempre abstrair-me do facto.
Há coros femininos e percussão esparsa e rica mas pouco usual na música ocidental em “Been So Long”, com as guitarras suaves e a voz de Cabic. Depois entra uma flauta lá ao fundo. O que nos remete sempre para o deserto e para uma procura da geração psicadélica (e não só) de novas sonoridades, extra-ocidentais, e essas coisas todas. Isto tudo contrasta com Brooklyn, que é donde os Vetiver são. Daí serem hippies semi-urbanos. Há um vibrafone em “You May Be Blue” e uma melodia de guitarra perfeita em “No One Word”, que é cantada por Cabic e depois convida ao aparecimento de umas cordas (continuamos, então, no deserto californiano dos anos 60 e 70, em termos musicais), “I Know No Pardon” tem muito de country, com Cabic a arrastar a voz, em “Maureen” as cordas deslizam pela guitarra e tudo é, como no resto do disco, apenas bonito. E chega. Em “Red Lantern Girls” aparece uma guitarra, vinda do nada, distorcida, a arrastar-se durante alguns minutos, como alguém que aparece a correr no meio do cenário idílico do deserto. “Won’t Be Me” tem o melhor refrão do disco, e “Down At El Rio” fecha-o, finalmente, parando tudo com os “la la la la la” patenteados de Banhart, com a guitarra a fazer o mesmo.
Portanto, só os últimos parágrafos é que interessam realmente, o resto é só uma maneira pobre de disfarçar que não consegui encontrar uma introdução decente para isto tudo, tornando isto numa meta-crítica ou algo que se pareça. Talvez To Find Me Gone mereça mais, um disco mais maduro (a infantilidade, ou melhor, a inocência, pode muito bem ser associada ao freak-folk), menos livre, mais pensado, mas também bonito. Não consigo ver, sinceramente, nada de errado com isto. Mas também, para dizer a verdade, não consigo ver nada de excepcionalmente correcto aqui. É só bonito. Também não consigo encontrar nada de estranho aqui. Pode-se dizer que o mais estranho deste disco é mesmo não ser nada estranho. Mas é bonito. Há um punhado de canções bonitas. E às vezes isso é suficiente. “Às vezes, às vezes.”
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
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