DISCOS
Xiu Xiu
Fabulous Muscles
· 12 Abr 2004 · 08:00 ·
Xiu Xiu
Fabulous Muscles
2004
5RC


Sítios oficiais:
- 5RC
Xiu Xiu
Fabulous Muscles
2004
5RC


Sítios oficiais:
- 5RC
Escrever sobre Fabulous Muscles não é tarefa fácil. A congeminação do texto presente estendeu-se até ao limite da razoabilidade. Na era do acesso livre à música, em que a quantidade de estímulos de next big things e hypes soterra o melómano, um disco como a mais recente obra dos Xiu Xiu corre o risco de ser descartado à primeira audição. Não estamos perante um disco fácil, de contornos e arestas polidas. Não se trata, contudo, de um disco obtuso, ensimesmado e "umbiguista" - nunca nenhum disco dos Xiu Xiu teve tantos hooks pop e melodias (quase) impolutas.

Xiu Xiu é o nome de uma personagem do filme Xiu Xiu: The Sent Down Girl, realizado por Joan Chen. Lao Jin, um treinador de cavalos de cinquenta anos, apaixona-se pela jovem Xiu Xiu, de dezasseis anos, na China da Revolução Cultural. Uma dor imensa corrói o coração de Lao, ao ver a jovem Xiu Xiu perder a inocência ao prostituir-se com soldados. Lao sofre porque compreende que nada pode haver entre Xiu Xiu e ele - a diferença entre os dois impede o amor.
A obra de Jamie Stewart - mentor e peça insubstituível dos Xiu Xiu - é, como o filme, triste, estupidamente triste. Não se trata da tristeza que é apanágio do cancioneiro de muitos trovadores de viola em riste e muito menos da angústia vazia e borbulhenta de uma qualquer banda de nu-metal. A tristeza de Jamie Stewart é desesperada, sem luz alguma ao fundo, hiperbólica, exagerada, autofágica. Uma tristeza, uma angústia que, na história da música popular, encontrarão porventura apenas comparação com as de Ian Curtis. A propósito, Stewart assume o fascínio pela voz dos Joy Division. Na perturbada "Ian Curtis Wishlist", a música que fecha o disco anterior A Promise, Stewart pergunta "What will happen?". É uma pergunta que permanece sem resposta.

Terceiro longa-duração em dois anos, Fabulous Muscles não apresenta sinais de descuido criativo. Pelo contrário, este é o disco em que os intentos de Stewart terão chegado mais longe. As obsessões pela dor, pelo obsceno e pelo doentio permanecem e os Xiu Xiu são ainda a banda mais triste do mundo - do meu mundo -, mas deixaram-se apanhar pelas melodias e permitem até alguma cantoria no chuveiro. As letras, essas, mantêm-se perturbadas e expõem a complexa psique de Stewart ou o que ele quer que nós vejamos para seu gáudio sádico. A dissonância entre o afago da melodia e a angústia das letras gera o encanto deste disco.

Fabulous Muscles está entre o som Ian-Curtis-numa-lixeira-de-electrodomésticos de "Knife Play" e as canções acústicas de A Promise (até "Fast Car" de Tracy Chapman foi subvertido) e está também noutro lugar, mais pop e mais electrónico. O ruído explícito surge apenas em alguns temas, como "Support Our Troops (Black Angels OH)", uma descrição aterradora do assassínio de uma rapariga por um soldado americano, distante de qualquer formato canção. Stewart narra, sem comiserações, "Did you know you were going to shoot off the top of a four year old girl's head and look across her car-seat down into her skull and see into her throat and did you know that her dad would say to you, "Please sir, can I take her body home?".

Sons de sintetizadores manhosos a desenhar melodias de videogame antigo abrem o disco. "Crank Heart" faz-nos dançar, quando pensávamos que os Xiu Xiu não o sabiam fazer. "Bunny gamer (b)" segue a mesma linha de IDM tosca - a electrónica dos Xiu Xiu é lo-fi, sem requintes -, mas o tom é mais introspectivo. Stewart, de voz vulnerável, um Curtis ainda mais despido, canta "I'm not who you want, alright, alright, alright, alright" - a resignação à impossibilidade do amor.
"I Luv the Valley OH" é incrivelmente catchy pelo riff de guitarra, estranhamente pop-rock. O tema é épico, a voz grave, dramática - há até um "la la la la" clássico e morriseyano (a tristeza cantada e chacoteada pela ironia). Um berro "OH!" é arrancado às entranhas. Esta é música que vem de dentro, que sua as estopinhas, que expõe e despe quem a canta e, por arrasto, quem se dispuser a senti-la ("That's a heart and the both of you made it and I won't rest until I break it").

"Little Panda McElroy (b)" é apenas a voz de Stewart rodeada de feedback - voz solitária na bruma em dedicada declaração de amor ("I can stop hating my own heart I can do it because of you"). "Nieces Pieces (Boat Knife Version)" é semelhante, mas há tempo para um dedilhado de guitarra belíssimo, no final, a antecipar "Clowne Towne", canção envolta pelas cordas dos violinos. Uma balada belíssima. "Your true self has become weak and alone and annoying and a true ridiculous dumb-ass", cantado por Stewart não é despropositado, nem ridículo; é lindo.
Um tributo ao pai de Stewart ("It is hard for me to think something happy about you except for that dad, I love you and I will always, always miss you") fecha o disco. Simplesmente intitulada "Mike", a canção é Xiu Xiu da era "Knife Play", guitarras lancinantes, ruídos inertes e irritantes, desconcerto.

A meio do disco, em "Fabulous Muscles" (a canção), ouvimos a voz de Stewart, mais frágil que nunca, acompanhada por uma guitarra acústica. Violência, sexo, vazio, masoquismo. E os versos mais duros que já ouvi numa canção, porque rodeados de silêncio, expostos, sem ruídos que os tapem: "Cremate me after you cum on my lips. Honey boy place my ashes in a vase beneath your workout bench".
Pedro Rios
pedrosantosrios@gmail.com
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