Pop Dell´Arte
Lux, Lisboa
29 Dez 2005
Campo de Ourique, Janeiro de 1985. As ruas estão desertas, não há nada para fazer. As velhinhas falam e falam sobre os filhos e as filhas dos vizinhos e não se calam. Da janela do seu quarto, o jovem estudante de sociologia João Peste lê, lê e lê. Sai de vez em quando, vai ao cinema, encontra de alguma forma filmes antigos. Esta é uma das entradas do seu diário da altura:
Lisboa, 25 de Janeiro de 1985
Hoje comecei uma banda nova. Já esqueci os Ezra Pound e a Loucura. Chamei-lhe Pop Dell’Arte. Vamos ser uma das melhores e mais originais bandas de Lisboa da nossa época, de qualquer época. Vamos concorrer ao Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous..
Lisboa, 12 de Abril de 1985
Foda-se. O Rui Veloso deu-nos 0 em todas as categorias nas eliminatórias do Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Ele que fique com o seu “Chico Fininho”. Aposto que daqui a vários anos será um tipo sem personalidade, um velho com a mania que percebe aquele monstro que é “a música portuguesa” e não terá relevância musical nenhuma a não ser para as adolescentes da Linha que passam férias em Porto Covo Lisboa, 23 de Maio de 1985
Ganhámos o prémio de originalidade da final do Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Viva..
Mil paragens e términos depois...
Lisboa, 29 de Dezembro de 2005
A minha banda conseguiu. Somos uma das mais influentes bandas portuguesas. E julgo que continuamos a ser bons. Apesar de termos feito anos em Janeiro, comemoramos os 20 anos em Dezembro, mesmo no fim. Não vamos levar o Adolfo Luxúria Canibal para fazer (“cantar” é demasiado) “Juramento sem Bandeira”, mas vai ser bom. Vai ser no Lux, por isso quando acabarmos o nosso público pode misturar-se com as pitas da Linha que há 20 anos previ que fossem as maiores fãs do Rui Veloso.
E foi basicamente assim, para contextualizar tudo de uma forma parva, infantil e altamente ficcionada (os dias estão certamente todos os errados), o concerto celebratório dos 20 anos dos Pop Dell’Arte no Lux. A verdade é que os Pop Dell’Arte continuam frescos e francamente bons ao vivo. Já o tinham confirmado em Julho no Fórum Lisboa. A formação mais recente da banda é boa, e João Peste continua em forma como um dos melhores frontmen que a música portuguesa já conheceu.
Há uma cortina que cobre o palco, e para aí umas duas horas depois da hora marcada, a cortina abre-se ao som disparado de “So Goodnight”. João Peste entra, vestido com fato e gravata, e começa a cantar. Logo aí nota-se o mau som da voz, excessivamente alto. Isto será corrigido, de alguma forma, ao longo do concerto. Mas logo depois entra a banda toda, e o som do baixo também está alto. Em “Sonhos Pop”, talvez o maior êxito de sempre do grupo, as linhas melódicas do saxofone são substituídas pelas desbundas free do trompete de bolso de Sei Miguel, acabadinho de sair de um concerto da sua Special Atmos Crew no Left, em Santos, e que faz umas caras estranhas. Talvez seja isto o “free pop” preconizado pela banda de Peste, epitomizado no primeiro disco da banda, Free Pop. Durante a próxima hora, teremos a banda a desfilar pelos seus êxitos, os cânticos peculiares de João Peste, que se mexe, quase como se estivesse a representar, o trompete de bolso de Sei Miguel, as baterias de Luís San Payo, aliadas ao baixo e à(s) guitarra(s), sempre com projecções de vídeos atrás da banda. Comparando com o concerto de Julho do Fórum Lisboa, estes 20 anos dos Pop Dell’Arte no Lux pecaram por uma faceta de espectáculo visualmente menos rica, mas mais imediata e intimista, à qual se alia o facto de as pessoas estarem em pé e não sentadas, mais típico de um “concerto rock”.
Mas os Pop Dell’Arte, a bem dizer, poucas vezes se aproximaram da típica “banda rock”. Sobre eles, numa entrevista a Rui Eduardo Paes em 1999, Rafael Toral, que a dada altura fez parte do grupo, a par de João Paulo Feliciano, e como No Noise Reduction, diz: “Os Pop dell'Arte eram um grupo muito aberto, cujo génio estava na sua capacidade de integração de referências, formas e abordagens díspares ou mesmo incompatíveis. A certo ponto assumi um pouco o papel de "sabotador" de serviço, mas na verdade era impossível sabotar aquela música, um caldeirão capaz de absorver praticamente tudo. O resultado era uma tensão constante entre os elementos que era muito enriquecedora.” Isto continua a notar-se perfeitamente ao vivo, temos, nas próprias letras de João Peste, sejam em inglês, em português, em francês ou em meras onomatopeias que se aproximam do scat jazzístico, as referências todas. “Dada e o surrealismo”, em “Sonhos Pop”, é um bom exemplo disso.
Se no Fórum Lisboa estavam as referências visuais da banda todas a ser projectadas, no Lux já não, mas, ainda assim, as imagens complementavam bem a música, fossem a adicionar uma carga homo-erótica a “Querelle”, onde o cowbell de Tiago Miranda estava em grande, aproximando-se às mais recentes modas do punk-funk, mas uns 20 anos antes, ou a dar um efeito “Relax” a la Frankie Goes to Hollywood em “Esborre!”.
Curto e eficaz, apenas com os problemas do som (que acabaram por não chatear assim) tanto, os Pop Dell’Arte celebraram o ano dos seus 20 anos, fechando-o em beleza no Lux. Numa altura em que a compilação que celebra a carreira dos mesmos está quase a chegar, e em que o novo álbum de originais teima em não fazê-lo, só há uma opção para os fãs: é ir vê-los ao vivo. Apesar de haver sempre algo que corre mal, isso não interessa no fim, os Pop Dell’Arte, mesmo com as sucessivas paragens e fins, continuam vivos. E bons.
Campo de Ourique, Dezembro de 2005. As velhas não continuam as fofoqueiras porque a maior parte delas já morreu, foram substituídas por outras velhas e por gente mais nova. A chama do bairro, pelo menos musicalmente, já morreu. No seu quarto, João Peste continua a ler. E a escrever no seu diário:
Lisboa, 30 de Dezembro de 2005
A minha banda conseguiu celebrar de forma satisfatória os 20 anos. As pitas fãs do Rui Veloso estavam todas cá em cima para ouvir o Tiago Miranda passar world music. Acho que devo agradecer-lhe. Alguém que passa world music no Lux para habitantes da Linha merece todo o meu respeito. Ainda mais se os fizer dançar. Foi uma noite especial para mim. Espero que tenha sido para os outros.
Lisboa, 25 de Janeiro de 1985
Hoje comecei uma banda nova. Já esqueci os Ezra Pound e a Loucura. Chamei-lhe Pop Dell’Arte. Vamos ser uma das melhores e mais originais bandas de Lisboa da nossa época, de qualquer época. Vamos concorrer ao Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous..
Lisboa, 12 de Abril de 1985
Foda-se. O Rui Veloso deu-nos 0 em todas as categorias nas eliminatórias do Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Ele que fique com o seu “Chico Fininho”. Aposto que daqui a vários anos será um tipo sem personalidade, um velho com a mania que percebe aquele monstro que é “a música portuguesa” e não terá relevância musical nenhuma a não ser para as adolescentes da Linha que passam férias em Porto Covo Lisboa, 23 de Maio de 1985
Ganhámos o prémio de originalidade da final do Concurso de Música Moderna do Rock Rendez-Vous. Viva..
Mil paragens e términos depois...
Lisboa, 29 de Dezembro de 2005
A minha banda conseguiu. Somos uma das mais influentes bandas portuguesas. E julgo que continuamos a ser bons. Apesar de termos feito anos em Janeiro, comemoramos os 20 anos em Dezembro, mesmo no fim. Não vamos levar o Adolfo Luxúria Canibal para fazer (“cantar” é demasiado) “Juramento sem Bandeira”, mas vai ser bom. Vai ser no Lux, por isso quando acabarmos o nosso público pode misturar-se com as pitas da Linha que há 20 anos previ que fossem as maiores fãs do Rui Veloso.
E foi basicamente assim, para contextualizar tudo de uma forma parva, infantil e altamente ficcionada (os dias estão certamente todos os errados), o concerto celebratório dos 20 anos dos Pop Dell’Arte no Lux. A verdade é que os Pop Dell’Arte continuam frescos e francamente bons ao vivo. Já o tinham confirmado em Julho no Fórum Lisboa. A formação mais recente da banda é boa, e João Peste continua em forma como um dos melhores frontmen que a música portuguesa já conheceu.
Há uma cortina que cobre o palco, e para aí umas duas horas depois da hora marcada, a cortina abre-se ao som disparado de “So Goodnight”. João Peste entra, vestido com fato e gravata, e começa a cantar. Logo aí nota-se o mau som da voz, excessivamente alto. Isto será corrigido, de alguma forma, ao longo do concerto. Mas logo depois entra a banda toda, e o som do baixo também está alto. Em “Sonhos Pop”, talvez o maior êxito de sempre do grupo, as linhas melódicas do saxofone são substituídas pelas desbundas free do trompete de bolso de Sei Miguel, acabadinho de sair de um concerto da sua Special Atmos Crew no Left, em Santos, e que faz umas caras estranhas. Talvez seja isto o “free pop” preconizado pela banda de Peste, epitomizado no primeiro disco da banda, Free Pop. Durante a próxima hora, teremos a banda a desfilar pelos seus êxitos, os cânticos peculiares de João Peste, que se mexe, quase como se estivesse a representar, o trompete de bolso de Sei Miguel, as baterias de Luís San Payo, aliadas ao baixo e à(s) guitarra(s), sempre com projecções de vídeos atrás da banda. Comparando com o concerto de Julho do Fórum Lisboa, estes 20 anos dos Pop Dell’Arte no Lux pecaram por uma faceta de espectáculo visualmente menos rica, mas mais imediata e intimista, à qual se alia o facto de as pessoas estarem em pé e não sentadas, mais típico de um “concerto rock”.
Mas os Pop Dell’Arte, a bem dizer, poucas vezes se aproximaram da típica “banda rock”. Sobre eles, numa entrevista a Rui Eduardo Paes em 1999, Rafael Toral, que a dada altura fez parte do grupo, a par de João Paulo Feliciano, e como No Noise Reduction, diz: “Os Pop dell'Arte eram um grupo muito aberto, cujo génio estava na sua capacidade de integração de referências, formas e abordagens díspares ou mesmo incompatíveis. A certo ponto assumi um pouco o papel de "sabotador" de serviço, mas na verdade era impossível sabotar aquela música, um caldeirão capaz de absorver praticamente tudo. O resultado era uma tensão constante entre os elementos que era muito enriquecedora.” Isto continua a notar-se perfeitamente ao vivo, temos, nas próprias letras de João Peste, sejam em inglês, em português, em francês ou em meras onomatopeias que se aproximam do scat jazzístico, as referências todas. “Dada e o surrealismo”, em “Sonhos Pop”, é um bom exemplo disso.
Se no Fórum Lisboa estavam as referências visuais da banda todas a ser projectadas, no Lux já não, mas, ainda assim, as imagens complementavam bem a música, fossem a adicionar uma carga homo-erótica a “Querelle”, onde o cowbell de Tiago Miranda estava em grande, aproximando-se às mais recentes modas do punk-funk, mas uns 20 anos antes, ou a dar um efeito “Relax” a la Frankie Goes to Hollywood em “Esborre!”.
Curto e eficaz, apenas com os problemas do som (que acabaram por não chatear assim) tanto, os Pop Dell’Arte celebraram o ano dos seus 20 anos, fechando-o em beleza no Lux. Numa altura em que a compilação que celebra a carreira dos mesmos está quase a chegar, e em que o novo álbum de originais teima em não fazê-lo, só há uma opção para os fãs: é ir vê-los ao vivo. Apesar de haver sempre algo que corre mal, isso não interessa no fim, os Pop Dell’Arte, mesmo com as sucessivas paragens e fins, continuam vivos. E bons.
Campo de Ourique, Dezembro de 2005. As velhas não continuam as fofoqueiras porque a maior parte delas já morreu, foram substituídas por outras velhas e por gente mais nova. A chama do bairro, pelo menos musicalmente, já morreu. No seu quarto, João Peste continua a ler. E a escrever no seu diário:
Lisboa, 30 de Dezembro de 2005
A minha banda conseguiu celebrar de forma satisfatória os 20 anos. As pitas fãs do Rui Veloso estavam todas cá em cima para ouvir o Tiago Miranda passar world music. Acho que devo agradecer-lhe. Alguém que passa world music no Lux para habitantes da Linha merece todo o meu respeito. Ainda mais se os fizer dançar. Foi uma noite especial para mim. Espero que tenha sido para os outros.
· 29 Dez 2005 · 08:00 ·
Rodrigo Nogueirarodrigo.nogueira@bodyspace.net
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